São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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Plano Real corre pela pista de dentro

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Faltando 18 dias para o início da terceira fase do Plano Real, é possível identificar um padrão bem definido nas decisões que vêm sendo tomadas pela equipe econômica. O governo quer implementar um programa de estabilização ousado e definitivo mas quer, simultaneamente, manter as portas entreabertas para rever os compromissos assumidos. Essa atitude aparece com clareza em decisões anunciadas nos últimos dias:
1) O governo afirma que vai manter o câmbio "estável" por alguns meses, mas não assume o compromisso de fixar de uma vez por todas a paridade entre o real e o dólar por tempo indeterminado;
2) A aplicação automática da Ufir para a correção dos impostos federais será "suspensa" após a criação do real, mas o indexador continuará sendo calculado e utilizado seletivamente pelo governo;
3) O Banco Central vai submeter a emissão de reais a "limites quantitativos e estreitos", amarrando-a à variação das reservas cambiais, mas o lastro será parcial e não incluirá a conversibilidade plena da nova moeda;
4) O governo se compromete a respeitar o regime de liberdade de preços, mas pretende lançar mão do poder de polícia conferido pela nova lei antitruste para punir os "excessos" e os "aumentos abusivos de preços".
Este conjunto de medidas mostra que a estratégia da equipe econômica é correr pela pista de dentro. A opção é ir tão longe quanto for possível no caminho escolhido, mas sem assumir compromissos irreversíveis. Cláusulas de arrependimento ficarão abertas para qualquer eventualidade. O Plano Real não será um programa de estabilização do tipo "tudo ou nada".
Até que ponto é válida esta opção? De um modo geral, a estratégia mais flexível que vem sendo adotada pelo governo parece-me justificada. A existência de cláusulas de arrependimento, é verdade, tem um custo. Elas reduzem a credibilidade do plano e favorecem a crença de que o próprio governo tem dúvidas sobre a sustentação da estabilidade monetária a médio prazo.
O fato, contudo, é que é para ter dúvidas mesmo. Como tenho argumentado nesta coluna, os processos de ajuste fiscal e de liberalização econômica no Brasil ainda não estão suficientemente maduros para sustentar a conquista da estabilidade em caráter permanente. Na falta destes fundamentos, nenhuma arquitetura financeira, por mais engenhosa que seja, conseguirá manter o edifício da moeda estável de pé por muito tempo.
O desejável teria sido manter eleições e programa de estabilização tão separados quanto fosse possível. Isso não foi feito. Mas partir para o "tudo ou nada" agora –no final de um governo desmoralizado e a poucos meses das eleições– seria uma aventura de altíssimo risco. Abrir mão da flexibilidade, colocando todas as fichas na estabilização a qualquer preço, seria embarcar numa aposta que não só não garante a vitória definitiva sobre a inflação como poderia causar danos irreparáveis na economia do país.
Correta no atacado, a estratégia do governo escorrega feio no varejo. A decisão intempestiva do presidente Itamar sobre a conversão das mensalidades escolares em URV já seria motivo suficiente para acender a luz vermelha no painel. Mas o que faz disparar todos os alarmes é a nova legislação antitruste defendida pelo governo e já aprovada pelo Congresso.
Se a lei fosse apenas o que o nome diz, não haveria nada de errado com ela. A prevenção de práticas anticompetitivas é parte do mínimo legal da economia de mercado. Como dizia Jacob Viner, um dos pais da escola de Chicago, "praticamente todo apoio, em termos éticos e econômicos, que a teoria econômica dá ao sistema de livre iniciativa baseia-se no pressuposto de que o empreendimento é não apenas privado e livre mas que é competitivo".
A competição e a busca do lucro estimulam a empresa livre e privada a tentar obter ganhos de produtividade através do investimento em capital humano e da inovação técnica e organizacional. Mas para que estes ganhos cheguem até onde se deseja, isto é, até o bolso, o estômago e a sala de estar do consumidor final, é imprescindível que esta empresa opere num ambiente competitivo.
O problema com a nova lei antitruste é que ela atenta contra o que supostamente defende. Na prática, ela representa muito mais uma ameaça à ordem de mercado do que um mecanismo de salvaguarda da competição. Isso acontece não tanto em função do tamanho das multas e prisões previstas na lei, mas por conta do poder discricionário e quase ilimitado que ela confere ao Conselho de Defesa Econômica (Cade) para "apreciar atos e condutas" e aplicar punições.
Nos termos em que foi formulada, a lei antitruste é um verdadeiro cheque em branco nas mãos dos governantes para interferir nas trocas livres e voluntárias que são a alma das relações de mercado. Afinal, o que não podem significar expressões vagas e absurdamente genéricas como "aumento abusivo de preço", aumentos "sem justa causa" ou "infrações contra os mecanismos naturais de formação de preços"?
As aberrações estão por toda parte. O artigo 18, por exemplo, prevê até mesmo a punição de acionistas minoritários da "empresa infratora", na condição de "responsáveis solidários". O artigo 21 define como criminosa qualquer empresa que possua "o domínio de mercado relevante de bens ou serviços" e controle 30% do mercado em que atua. E por aí vai...
Leis desse tipo revelam um espantoso descaso pela liberdade econômica –o capricho da autoridade é a lei. Fora isso, elas são fruto de um profundo desconhecimento do capitalismo moderno. Nossa lei antitruste teria sufocado, ainda no berço, empresas altamente inovadoras como a Sony e a Nintendo japonesas. É duvidoso que os xiitas do PT –aqueles que na campanha de 89 queriam vencer a inflação "tabelando as margens de lucro"– conseguissem formular algo assim tão desastrado.
A ironia suprema de tudo isso é que o Estado brasileiro é ele próprio o maior aliado de práticas anticompetitivas em nossa economia. Os monopólios estatais usam e abusam de seus privilégios para sugar o contribuinte, sabotar o Executivo e explorar o consumidor final. Se o preço dos bens de consumo popular, como alimentos e artigos de higiene e limpeza, ainda não caiu como aconteceu com os eletrônicos, é porque as tarifas de importação impostas pelo governo não permitiram.

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