São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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Schopenhauer em nova versão

Estudo inverte o sentido jabitual dos comentários

MÁRCIO SUZUKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Schopenhauer em nova versão
Não seria demais dizer que este livro, em sua singela despretensão, constitui um marco nos estudos sobre a filosofia de Schopenhauer. Por meio de cuidadosa análise, na qual persegue o tema do antídogmatismo onde menos se suspeitava encontrá-lo, a autora mostra que pôr fim às pretensões ilusórias da metafísica é uma preocupação constante em todo o sistema desse ilustre representante do pós-kantismo. A leitura que faz dos textos é uma autêntica reinterpretação da metafísica da vontade, que consegue inverter o sentido habitual dos comentários e reascender o interesse pelas idéias do filósofo.
Não se pode compreender o alcance dessa tentativa de reabilitação da metafísica - eis a peincipal advertência do livro -, se não leva em conta a inspiração crítica e antidogmática que está em sua origem. É claro que, quando se fala em reabilitar a metafísica sem deixar de lado a crítica ao dogmatismo, se trata, para todos os pensamentos do perío, de seguir as lições de Kant. Um primeiro esforço para assimilar os ensinamentos do criticismo se revela já na forma em que osistema schopenhauer se apresenta, onde, ao contrário da cadeia de razões das metafísicas dogmáticas, nenhuma parte pode se destacar como base de sustentação do todo, mas é o todo que, como num organismo, dá fundamento e sentido às partes.
Essa equivalência entre as partes de um todo orgânico é explicitada pela discussão das relações entre representação e vontade. Na articulação desses dois conceitos, Schopenhauer retorna aquilo que considera a maior descoberta de Kant, a distinção entre fenômeno e coisa em si, coma difereça de que já não os faz correponder a dois mundos diversos, o sensível e o inteligível, mas os concebe como dois lados, duas faces indissociáveis de um mesmo mundo. Como já deixa claro o título de sua obra mais importante, o mundo é vontade e representação. Eliminar a unilateralidade e saber combinar esses dois pontos de vista do mesmo universo é para a autora, condição indispensável para a interpretação dos textos, pois o perspectivismo criado pela alternância entre esses dois planos dá a Schopenhauer as respostas de que precisa para evitar os problemas do velho dogmatismo, e munição para polemizar contra o novo, que, segundo ele, teria se aproveitado justamente daquela brecha da filosofia kantiana - a dualidade dos mundos, a hipótese de um mundo suprasensível - a fim de nela introduzir uma maldisfarçada moral reológica.
O primeiro tema analisado a partir desse perspectivismo é o da causalidade, onde o filósofo lança mão desde dispositivo crítico contra o abuso que consiste em tomar um princípio meramente cognitivo - a relação de causa e efeito - como princípio ontológico.
O finalismo será refutado de maneira semelhante, pois consiste na transposição ilusória de uma representação para um domínio irrepresentável - o da vontade. As perguntas como e por que há causas na natureza só tem sentido do ponto de vista da representação, mas não valem para o da vontade, que é cega, sem fuindamento (‘‘grundlos’’) e sem finalidade (‘‘zwecklos’’).
Mas, se na perspectiva da repesentação ela não passa de um acúmulo de atributos negativos, o que é, afinal, a vontade em si? Sem negar que a leitura que a interpreta como substrato ontológico se ampara em muitas passagens (nas quais aparece como a essência do mundo), Maria Lúcia Cacciola apresenta uam outra interpretação (sem dúvida, muito mais atraente) desses mesmos textos, para mostrar que a vontade desempenha o papel de uma ‘‘ontologia negativa’’, de ‘‘fator explicativo’’ ou de ‘‘complemento necessário das séries causais’’. É como se tivesse de exercer a função do caráter inteligível sem dar deixas para o dogmatismo, como na hipótese da causalidade supra-sensível em Kant.
Mas seria possível cumprir essa exigência, sem se ver cercado de miragens? Eis a questão, de fundo kantiano, que leva Schopenhauer a conceber a vontade como uma coisa em si suficientemente dessubstanciada para pôr limites ao conhecimento, e fim às pretensões transcedentes do dogmatismo, mas ao mesmo tempo suficientemente ‘‘densa’’ para poder das nascimento a uma ‘‘metafísica imanente’’: sem vontade, haveria apenas representação, ‘‘apenas visibilidade, e não o que se torna vísivel’’. Ou, como diria Kant: ‘‘Pois, do contrário, resultaria a proposição absurda de que haveria aparição, sem que nela algo aparecesse.

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