São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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A editoração como crítica

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa passagem memorável de seu ensaio sobre o romance "White Jacket", de Melville, o grande crítico norte-americano F.O. Matthiessen se detém sobre uma expressão particular: "soiled fish of the sea" (o peixe sujo do mar). Para Matthiessen, "ninguém, exceto Melville, poderia ter criado o mesmo efeito... esse inesperado vínculo entre a limpeza (do mar) e a sujeira (do peixe) só poderia ter nascido de uma imaginação capaz de apreender o terror das profundezas, das profundezas imateriais não menos que físicas."
Infelizmente, para o crítico como para nós, hoje se sabe que a palavra "soiled" não passa de um erro tipográfico: Melville escreveu um adjetivo bem mais prosaico, no contexto: "coiled" (espiralado), que só virou "soiled" na transcrição do manuscrito.
Erros como esse são muito mais frequentes do que se imagina e interpretações baseadas em gralhas, ou em alterações de qualquer outra ordem, se não chegam a ser a regra, também não são exatamente a exceção. O fato é que, para a maioria dos críticos, como para a maioria dos leitores, a veracidade do texto impresso não é jamais considerada. Ao virar livro, o texto adquire o estatuto de um objeto natural e conquista uma autenticidade que, via de regra, ninguém mais contesta, assim como ninguém contesta a autencidade de uma maçã, ou do mar.
Dificuldades como essa na editoração de um texto se multiplicam muito no caso dos autores modernistas. Para um poeta como Ezra Pound, ou para um romancista como Joyce, a tecnologia de impressão é um dos tantos elementos compondo a obra e não meramente seu suporte.
Em carta a Louis Zukofsky, de 1931, William Carlos Williams já podia dizer que "a maior parte das obras modernas foi escrita para ser impressa e não estará completa até chegar à impressão". Ninguém como eles levou a editoração tão a sério, como parte integral do trabalho de um escritor. Pound e Yeats foram editores profissionais, como também o foram T.S. Eliot e Virginia Woolf.
Deixando de lado a questão da tipografia, todos viam também a editoração como uma das maneiras de agir mais diretamente sobre as contingências mundanas da literatura. Ao editor, afinal, compete, ao menos em parte, escolher o que será oferecido aos seus leitores, e como. Mas a palavra "mundanas", aqui, não aponta apenas para interesses pessoais, ou de grupo: o fato é que cada decisão editorial está sempre ligada a questões de formatura, que são duas questões centrais do modernismo.
Curiosamente – ou talvez inevitavelmente mesmo – nenhum deles jamais conseguiu proteger suas próprias obras de adulteração tipográfica ou editorial. Só nesses últimos anos, e sob o estímulo de uma nova edição de "Ulisses", começaria a ser revista a obra dos grandes modernistas, segundo critérios acadêmicos de editoração.
Estão agora em andamento novas edições das obras completas de Yeats (Macmillan), Auden (Princeton), D.H. Lawrence (Cambridge), Virginia Woolf (Hogarth) e Faulkner (Library of America). O caso de Joyce é especial.
Sob os cuidados de Hans Walter Gabler, a nova edição de "Ulisses" apareceu há dez anos, publicada pela editora Garland. Autodescrita como "edição sinóptica", em três volumes, ela oferece ao estudioso, na página da direita, um texto limpo, preparado pelo editor, e, na página da esquerda, a reunião de todas as variantes de todos os manuscritos já encontrados do texto original, anteriores a qualquer publicação.
A edição acabou provocando uma acirrada polêmica, em torno às alterações propostas no texto editado. Mais interessante, para nossos propósitos, é o formato "sinóptico" ("que resume tudo em si") das páginas pares: ali se revela, de fato, uma nova idéia de editoração.
Apoiada no trabalho de estudiosos contemporêneos como Hans Zeller, a edição de Gabler foi concebida para sublinhar a noção da obra como um objeto. Pode-se dizer que é uma edição de Ulysses a partir de uma outra visão da literatura, que já se adivinha nas páginas de "Finnegans Wake". Embora apresente sua construção particular do texto, ela privilegia as variantes e alternativas, não como equívocos, mais tarde corrigidos, mas sim como estágios na vida de um texto, que talvez não chegue nunca a um estado definitivo e livre de erros.
A mesma noção tem marcado, por exemplo, o trabalho de editoração das peças de Shakespeare; já que uma "obra renascentista não é pensada segundo os padrões modernos de autonomia e já que um texto teatral, naquela época ainda mais do que hoje, variava a cada nova produção, há um consenso, agora, de que seria preciso editar esses textos em todas as suas versões, superpostas umas às outras.
O instrumento ideal para tanto o "hypertext" do computador. Medievalistas, como Bernard Cerquiglini, defendem, o mesmo tratamento para os textos medievais. "A informática", diz ele, em seu livro 'Éloge de la Variante' (Seuil, 1989) é uma técnica da escrita" –a melhor que temos para o entendimento dos textos medievais, em seu caráter de transformação contínua. Como não há um texto definitivo, não há porque se "fixar" uma edição. O texto existe em suas variantes.
A anedota de Matthiessen, o caso Gabler e esses exemplos de editoração informatizada já seriam o bastante para demonstrar que, quando se fala em "edições críticas", muito mais está em jogo do que meramente a correção de vírgulas e parênteses.
Toda edição é uma interpretação. Pode ser forte ou fraca, renovadora ou convencional, mais ou menos afinada com o seu objeto. Mas como não existe nenhum texto que não seja editado, não seria exagero dizer que, a princípio, seria sempre bom avaliar a edição, antes de se estudar o texto. A editoração é uma forma de crítica, mas a crítica só raramente se preocupa com a identidade material do que está lendo. Editoração e crítica precisariam andar de mãos dadas; por ora, seria bom, ao menos, perder a ilusão de neutralidade, ou inocência na relação que existe entre um texto e um livro.
Dificilmente alguém poderia permanecer editorialmente inocente depois da leitura da coletânea, organizada por George Bornstein, "Representing modernist texts editing as interpretation", organização de George Bornstein (um dos editores do novo Yeats). São dez ensaios, cada um sobre um projeto de editoração, e discutindo, em detalhes, o que vem se passando na transmissão das obras de Auden, H.D., Faulkner, Joyce, Lawrence, Mariane Morre, Pound, Williams, Virginia Woolf e Yeats.
Quase todos os artigos foram escritos pelos próprios editores dos poetas, e combinam o manifesto teórico com a narrativa de dúvidas e acertos em seus próprios projetos, e erros nos dos outros. O ensaio final, de Michael Groden, da editoração, desde os trabalhos pioneiros de Gregg e Bowers até a noção social de "texto" de Jerome McGann, ou as explorações da informática num livro recente como "Scholarly Editing in the Computer Age", de Peter Schillingsburgh.
Dada a falta de edições críticas em nosso país, toda esta discussão pode parecer acadêmica, no mau sentido. Mas basta para um pouco para pensar e cada um de nós terá de reconhecer que a nossa leitura diária, para não falar na formação de uma literatura nacional, está mesmo fundada no mais escorregadio dos terrenos.
Segundo atesta Gabler, o texto de Ulysses –mesmo o texto supostamente corrigido, de 1961– apresentava uma média de nada menos que sete erros por página. Um livro tão cheio de neologismo e idiossincrasias, como "Grande Sertão: Veredas" possivelmene teria o mesmo ou mais.
Salvo um ou outro projeto isolado (entre eles, os da Coleção Unesco, de circulação restrita; ou "Os Sertões", editador por Walnice Galvão; ou alguns trabalhos da Fundação Casa de Rui Barbosa), nossa literatura permanece dormindo feliz nos seus erros, seus cortes, suas adaptações e acidentes de impressão. Nós simplesmente não sabemos o que estamos lendo, mas há motivos para se suspeitar que não seja tudo do bom e do melhor.
"Já que contamos com um número suficiente de impressoras, com bastante papel e bastante tinta, é simplesmente uma estupidez que não se possa ter as edições que se quer." Apesar do tom de deafio, a verdade é que nem Ezra Pound conseguiu fazer a edição que ele queria dos poemas traduzidos de Guido Cavalcanti.
Já que aqui não contamos nem com um número suficiente de impressoras, nem de papel, nem de tinta, seria demais exigir as edições que se quer; também os entraves do mercado editorial, no Brasil, são muito diferentes dos da Inglaterra nas primeiras décadas do século. Mas identificar os problemas já é alguma coisa. A solução de um problema começa na pergunta, e essa coletânea sugere, para nós, um número razoável de boas perguntas, para as quais ficamos devendo boas, razoáveis –ou simplesmente alguma resposta.

A relação entre texto e livro não é neutra nem inocente

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