São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 1994
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O som dos quartéis

O recado ficou restrito ao presidente e aos ministros presentes à comemoração da Batalha do Riachuelo, no sábado em Brasília, graças à explicação oficial de que houve uma falha protocolar. Mas, de fato, a interrupção repentina do Hino Nacional pela Banda dos Fuzileiros Navais, que o presidente e os ministros continuaram a cantar sozinhos, teve toda a gravidade de uma manifestação desrespeitosa, como protesto contra a demora dos dois aumentos esperados pelos militares. Há muito tempo não havia quebra da disciplina por iniciativa dos níveis mais baixos da hierarquia.
Reflexo da irritação nos quartéis, os ministros militares intensificaram, na semana passada, as pressões para revisão dos soldos militares. Na quinta-feira, o ministro do Exército, Zenildo Lucena, entregou ao presidente Itamar um documento advertindo-o para a situação de risco motivada pela insatisfação com os soldos atuais. No sábado, o ministro da Marinha, Ivan Serpa, valeu-se do próprio discurso sobre a Batalha do Riachuelo para tratar da "degradação social dos militares" causada pelos soldos. No domingo, foi a vez do ministro da Aeronáutica, Lélio Lobo, aproveitando o aniversário do Correio Aéreo Nacional.
A tensão é verdadeira e é grave sob três aspectos. O primeiro é o mencionado pelo ministro Lucena, de natureza institucional. O segundo é material, sofrido pelas famílias dos funcionários civis do Executivo e pelos militares. O último é a constância dos momentos agudos desse problema, sem que os tecnocratas da economia encaminhem sequer mínimas soluções preventivas. Quando o aperto se agrava muito, os funcionários civis só têm o recurso da greve –e o governo reage. Os funcionários militares acenam com os riscos institucionais –e recebem do governo um sossega leão.
O resultado é que os quadros técnicos do governo, que já foram muito bons, cada vez têm menos gente qualificada e, dos qualificados, menos gente aplicada. E os militares, com seu método de obter aumentos, permanecem como impedimento a um regime de estabilidade confiável. Mantêm-se como militares tipicamente latino-americanos. Ou seja, institucionalmente mais latino-americanos do que profissionalmente militares.
Note-se que, com a sucessão dos momentos agudos e do recurso ao método, a extrapolação vem em crescendo, como era de esperar. Já o confronto com o Supremo Tribunal Federal, há dois meses, foi insuflado por militares, que não hesitaram em fazer as regras constitucionais ficarem por um fio. Agora temos o retorno a manifestações anti-hierárquicas. A próxima, por certo, não fugirá à regra da progressão.
As regras da isonomia determinada pela Constituição, igualando os vencimentos entre Executivo, Legislativo e Judiciário, foram aprovadas para aplicação em três fases. A primeira delas requer o aumento de 28,8% para o Executivo, os mais prejudicados, mas a equipe econômica preferiu a protelação. Os militares querem o aumento logo. Querem mais, porém. Querem uma medida provisória aumentando as suas gratificações. Se a regra da isonomia não for quebrada por isso, também aí têm razão.
O problema se complica com sua terceira reivindicação, a que não fazem referência por motivos táticos. É a aprovação do projeto, em pauta para votação pelo Congresso nesta semana, dando aos militares um tratamento diferenciado do que teriam os civis, na questão de vencimentos. Ora, se eles, com o seu método, é que forçaram a solução para a isonomia constitucional, com a diferenciação pretendem demolir a isonomia com um privilégio. Aí mesmo é que o aceno com o risco institucional não terá mais fim. Nem o regime de estabilidade confiável chegará jamais.
Se a democracia política estável é um objetivo do país, o tratamento dado aos militares não pode ser o humilhante estímulo a indisciplinas e pressões igualmente ameaçantes, nem privilégios que os ponham como casta superior.

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