São Paulo, sexta-feira, 17 de junho de 1994
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Aborto

A entrevista do médico Aníbal Faundes, da Universidade de Campinas, publicada ontem nesta Folha, teve o mérito de trazer à luz a delicada e complexa questão do aborto e sua ilegalidade no Brasil.
Diz o médico que, no Hospital das Clínicas daquela universidade, realiza abortos não apenas quando se enquadram nos dois casos permitidos pela lei brasileira –gravidez com risco de vida para a mãe ou resultante de estupro–, mas também quando o feto sofre de malformação que compromete sua chance de sobrevivência.
Não cabe aqui, certamente, fazer o elogio de uma iniciativa ilegal. Mas há que se convir que o médico da Unicamp está longe de ser o único a praticar essa infração no país. Entre a rigidez da lei e a realidade cotidiana de milhões de brasileiras que recorrem ao aborto pelas mais diversas razões há um abismo que o falso moralismo reinante mal consegue esconder.
Como todos sabem, mulheres de todas as classes sociais praticam em si mesmas ou submetem-se a abortos no país. O que varia é a maneira como o fazem. As mais abastadas pagam caro a clínicas cercadas de relativa higiene e segurança. As mais pobres recorrem aos meios que têm à mão –frequentemente os mais brutais e nocivos a sua própria integridade física e psíquica. Não são raras as mortes resultantes de tentativas de aborto. Há, além disso, os casos de perda da fertilidade e de outros danos irreversíveis à saúde da mulher.
O próprio sistema público de saúde paga caro pelos abortos clandestinos, ao ter de socorrer muitas de suas vítimas –situação que poderia ser diferente se se investisse em programas sérios e maciços de planejamento familiar, e se os abortos de fato necessários fossem realizados por médicos habilitados.
Se quiser superar o divórcio entre a letra da lei e sua efetiva aplicação, o Estado não pode fechar os olhos a esse quadro de horror. Ninguém provido de um senso básico de humanidade deixará de condenar a violência do aborto como método contraceptivo, mas só com uma alta dose de hipocrisia pode-se fingir não perceber que a atual lei se tornou anacrônica e precisa, após um debate amplo, sereno e desapaixonado de toda a sociedade, ser reformulada.

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