São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Lições de Cartagena

JORGE CASTAÑEDA

Cartagena das Índias foi um lugar apropriado para a realização da 4ª Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo Ibero-americanos, encerrada na última quinta-feira, dia 16.
Seu simbolismo resplandece na cidade amuralhada, jóia da colônia, nos hotéis modernos de origem financeira duvidosa, no mar do Caribe, povoado de navios repletos de turistas de meia-idade e do meio-oeste americano.
No outro lado do morro, a outra cidade: negra, pobre, intransitável à noite ou debaixo de chuva.
Os presidentes perceberam sem dúvida que nada na América Latina está isento de contradições, que tudo que vive e se move no continente está possuído –como Sierva Maria, a jovem de Cartagena apaixonada e exorcizada do último romance de Garcia Marquez– por múltiplos demônios: os da imaginação e os da própria realidade.
Presa entre a democracia e a desigualdade, entre a abertura econômica e a necessidade de industrializar-se, a América Latina vive momentos de grande alento e de consciência cada vez mais aguda da gravidade de seus problemas.
Primeiro, o lado bom. A democracia representativa deita raízes na América Latina. Nada é eterno nem seguro. Já surgiram conjunturas análogas que demoraram pouco para desvanecer-se, mas não se pode negar as evidências.
Com as exceções lamentáveis e diferentes entre si do Haiti, de Cuba e do México, a América Latina hoje desfruta o encontro mais longo que já teve na história com a democracia representativa.
Em todo o hemisfério prevalece a liberdade de imprensa, de manifestação e de organização. A sociedade civil floresce, os Estados se vêem obrigados a prestar contas e a internacionalização em temas tão diversos quando o meio ambiente e os direitos humanos reforça vigorosos processos internos de mobilização cidadã.
Grande novidade: pela primeira vez governantes corruptos são legal e institucionalmente tirados do poder. Um deles vai à prisão, outro perde o cargo e talvez sua fortuna. Muitos assistem com assombro e nervosismo.
Existe também outro motivo de satisfação, menos exaltante porém igualmente crucial. Trata-se, evidentemente, do fim do período de ajuste econômico e do reatamento dos fluxos de capital para a América Latina.
O ajuste foi, sem dúvida, pavoroso. Fez-se pelo lado dos gastos, não das receitas, em recessão e não em crescimento, exportando capitais via a fuga destes e via juros da dívida externa, em lugar de ser realizado captando-se dinheiro poupado vindo do exterior.
Os estragos são visíveis: mais de dez anos de estagnação, reduções impiedosas dos gastos sociais, infra-estrutura desintegrada. Os números falam por si: com exceção do Chile, da Colômbia, do Uruguai e da Costa Rica, a renda per cápita hoje, em dólares constantes, é inferior ou igual à de 1980 em todos os outros países.
Mas o pior já passou. Na maioria dos casos, a inflação foi controlada. As finanças públicas foram saneadas. Em alguns países, a dívida externa diminuiu, inclusive em termos reais, e em duas nações a reconversão microeconômica foi levada a cabo com sucesso.
Graças em parte ao ajuste consumado, em parte aos menores rendimentos reportados pelas inversões nos países industrializados, a região voltou a receber recursos do exterior.
Já era tempo: ninguém entendia como nações em via de desenvolvimento poderiam crescer sem dinheiro alheio. Agora há financiamento abundante e barato. O uso que dele for feito é outro problema, mas pela primeira vez em 15 anos a América Latina está importando capital.
Se há inquestionáveis pontos positivos, as coisas começam a se complicar.
O capital chega, o ajuste se consolidou, mas bem ou mal o crescimento não vem (México, Bolívia, Venezuela, América Central), ou vem com uma desigualdade crescente e intolerável (Brasil, Argentina, Colômbia, Chile).
Pior ainda, uma das condições do ajuste –a liberalização comercial– se transforma numa dificuldade aparente para a etapa seguinte: o crescimento. A ausência deste último, ou suas próprias características, acentua a desigualdade lacerante do continente, que por sua vez solapa a viabilidade destas precárias democracias.
A abertura das fronteiras e a imposição das leis das vantagens comparativas surtiram alguns efeitos indubitavelmente benéficos.
Um teto foi imposto à inflação: os preços dos bens e serviços produzidos localmente não podem ultrapassar os preços dos bens e serviços procedentes do exterior.
Algumas empresas, incentivadas pela concorrência estrangeira e beneficiadas por insumos mais competitivos, conquistaram novos mercados (embora o país que menos liberalizou seu comércio exterior, o Brasil, é o que realizou o ajuste microeconômico mais bem-sucedido). E o imposto regressivo que era o protecionismo se abateu.
Mas a moeda tem seu reverso. A região está se desindustrializando, centenas de milhares de latino-americanos –se não forem milhões– perdem seus empregos, e o hemisfério continua procurando, sem encontrar, os nichos nos quais seus recursos e fatores lhe permitam ser competitivo.
Ninguém com olhos abertos e consciência tranquila pode manter-se indiferente diante do sentido da citada busca, aparentemente infrutífera, com o inegável "boom" do narcotráfico em quase todos os países ao sul do rio Bravo.
A região se aventurou na destruição de boa parte de suas atividades produtivas anteriores –sem dúvida protegidas e ineficientes– sem saber quanto tempo levaria para encontrar novos nichos, nem quais estes seriam.
Não existe nada de graça no mundo. A abertura dos mercados de consumo de classe média na América Latina à onda de produtos provenientes dos Estados Unidos encerra suas próprias contradições.
Alguns dos que antes trabalhavam ou investiam na indústria ou na agricultura então protegidas agora investem ou trabalham em empresas concorrentes. Outros integram os diversos cartéis do narcotráfico (Cali, Ciudad Juárez) ou foram trabalhar em... Los Angeles.
Se as exportações latino-americanas não crescerem de forma durável num ritmo elevado e se a poupança interna não aumentar, as economias latino-americanas não crescerão. Se não crescerem, será impossível reduzir a abismal desigualdade latino-americana, embora o crescimento não constitua condição suficiente para isso.
Mas sem começar a reduzir a injustiça ancestral vigente em países como o Brasil, o México e o Peru e, mais recentemente, na Venezuela, Argentina e no Chile, as democracias não irão sobreviver.
Não se deve confundir lua de mel com estabilidade conjugal. A saída da ditadura (no Chile ou no Uruguai), o triunfo sobre a hiperinflação (na Argentina ou no Peru), ou a luta contra a corrupção e o vigor da sociedade civil (Brasil e Venezuela) não são eternos antídotos contra a desigualdade.
A democracia representativa não é viável quando o fosso que separa maioria pobre e minoria rica aumenta a cada dia. Todos os setores marginalizados, cujas aspirações foram postergadas por tempo indefinido, aproveitam a liberdade que a democracia lhes proporciona para expressar suas exigências.
Aceitam uma demora limitada, devido à necessidade de salvaguardar essa democracia incipiente, ou diante do imperativo de derrotar a hiperinflação, mas não aceitam esperar para sempre.
A combinação é explosiva: uma pobreza enorme, o sufrágio universal e a ausência de perspectivas (o efeito túnel de Albert O. Hirschman) desembocam sempre na violência e na instabilidade.
Já proliferam os indícios destes fenômenos: a revolta indígena em Chiapas, o ressurgimento do movimento operário e dos professores no Chile, a revolta em Santiago del Estero, na Argentina, no final do ano passado, e as duras greves dos trabalhadores na indústria eletrônica na Terra do Fogo.
Nenhum destes brotos de agitação social constituem ato alarmante por si só. Não obstante, refletem processos de fundo que recorrem na região inteira.
Assim, os chefes de governo e de Estado têm motivos para reflexão. Seus países e seus povos não vivem tranquilos; seus governantes, por isso, não podem dormir sossegados.
Os demônios que perambulam pelas vielas antigas da velha cidade colonial não habitam apenas as maravilhosas páginas do filho pródigo do litoral colombiano.
Perturbam o sono e se apossam das almas de milhões de latino-americanos, que ainda não encontraram o exorcista capaz de acabar com nossos males, antes que eles acabem conosco.

Tradução de Clara Allain

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