São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

De volta ao pós-moderno

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tanto se falou sobre o "pós-moderno", e o termo foi aplicado a tantas situações, que o debate em torno do assunto está sob forte risco de desprestígio. Um sorriso irônico já se tornou quase de praxe quando alguém emprega a palavra, que hoje vive o estatuto dúbio de ser algo entre um conceito interessante e um mero "slogan".
A despeito da enorme massa de publicações sobre o "pós-moderno", a gente sempre fica com a impressão de que não apreendeu inteiramente o conteúdo da coisa. Retemos algumas idéias vagas: a presença de um ecletismo estilístico contra os rigores modernistas, em especial no campo da arquitetura; uma crítica às "narrativas" que, como o marxismo e a psicanálise, buscavam uma interpretação totalizante do mundo; o fim das idéias de totalidade, de sujeito, de representação, de sentido; uma defesa do incongruente, do descontínuo, do transitório. Videoclips, Madonna, shopping centers, informática, cyberpunk...
Aplicada a tanta coisa, e mais ao que bem entendermos, é natural que a palavra se tenha desgastado –e sempre poderá haver algum espirituoso que diga que este fenômeno de desgaste é "pós-moderno" também.
O debate, entretanto, continua e tem relevância. O crítico literário e teórico marxista Fredric Jameson ocupa na discussão um papel especial. Reconhece –ao contrário de muitos colegas de filiação marxista– um peso próprio, um valor real no conceito de "pós-moderno". E, ao mesmo tempo, ao contrário de "pós-modernistas" radicais, como Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard, continua marxista.
Os primeiros ensaios do livro parecem, assim, envolver-se na obrigação de muitos esclarecimentos metodológicos, explicitações programáticas e polêmicas. Jogam-nos no centro da discussão, mas não nos pontos mais interessantes dela. Para o leitor brasileiro, para este pelo menos, é como se pegássemos o bonde andando, com a leve desconfiança de que ele está andando em círculo.
Jameson é melhor quando passa à crítica de obras específicas. Os últimos ensaios desta coletânea contém interpretações argutas a respeito de filmes e de livros que, embora às vezes pouco conhecidos, no Brasil, ilustram melhor o que a discussão em torno do pós-moderno está querendo dizer.
Analisando filmes como "Caravaggio", de Derek Jarman, "Yeelen", de Souleimane Cissé, ou "L'Hypothèse du Tableau Volé", de Raul Ruiz, Jameson desenvolve com inteligência a sua caracterização do pós-moderno como um momento em que a ligação entre sujeito e totalidade histórica, entre visualidade e narração, passam por uma crise relacionada às próprias modificações no sistema capitalista contemporânea.
É também importante o artigo que Jameson dedica a romances ou livros autobiográficos feitos por autores do Terceiro Mundo, onde a questão do "individualismo burguês" é rediscutida no contexto das sociedades subdesenvolvidas contemporâneas.
Mas, mesmo num artigo tão atento como este, envolvendo o problema da "importação" dos modelos literários europeus pelos países periféricos, Jameson deixa bastante a dever, em termos de sofisticação e precisão, a um autor como o marxista brasileiro Roberto Schwarz. É que, a despeito de suas intenções programáticas, Jameson é muito menos um "dialético", do que um crítico cuja vocação é antes classificatória, mapeadora.
Isto ressalta no maior, mais difícil e ambicioso ensaio da coletânea, "Os Limites do Pós-Modernismo", onde uma tipologia inspirada por obras arquitetônicas de vanguarda dá margem a uma discussão sobre os pontos pragmáticos básicos da arte moderna (suas intenções de "ruptura" e de "totalização") e de que modo se relacionam com os experimentos contemporâneos.
Reencontramos Jameson, talvez em sua melhor forma, no artigo "O Pós-Modernismo e a Sociedade", que abre outra coletânea sobre o tema: "O Mal-Estar no Pós-Modernismo", organizado por E. Ann Kaplan (Jorge Zahar Editor). A leitura deste livro é mais leve e variada. Com grande faro crítico, Jameson identifica, neste texto de 1984, algumas das principais características do estilo pós-moderno, relacionando obras específicas, em especial uma arquitetônica, o Hotel Bonaventure em Los Angeles, com a emergência de uma nova fase global de expansão capitalista. Tem-se a impressão de que, neste texto, Jameson estava mais livre para dar suas interpretações, sem encontrar ainda adversários à esquerda e à direita para qualquer coisa que dissesse.
"Mal-Estar na Modernidade" se encarrega de mostrar, contudo, que esses adversários não perderam tempo. Entre os ensaios coletados no livro, encontramos duas críticas brilhantes a Jameson e aos pós-modernistas, assinadas por Dana Polan e Warren Montag. Dana Polan pergunta se podemos caracterizar como "pós-modernista" o estágio de nossa cultura como um todo, ou se o termo não recobre apenas uma parte dela, restrita a um tipo específico de consumidor. Montag, a partir de uma ótica que junta Hegel e Althusser, critica o quanto de "apocalíptico", de "sem-saída" há na visão de Jameson, e, não sem ironia, aproxima-o do pessimismo antimarxista e "despolitizante" de Lyotard.
Mas os textos não são tão complicados quanto parece neste resumo. Montag, Polan e Jameson, neste livro, aparecem com artigos que dão ao debate sobre o pós-moderno uma inteligibilidade ao menos razoável. A coletânea de E. Ann Kaplan tem também uma parte dedicada a estudos mais específicos, onde o pós-feminismo convive com Bakhtin, Barthes como beisebol, "Rocky 4" com Julia Kristeva, e sobre o qual desisto de fazer qualquer resumo.
Dana Polan talvez atinja o alvo, quando diz em seu artigo: "O poder do conceito de pós-modernismo funciona como uma máquina de gerar discursos, e esse é o fenômeno que mais necessita de análise... Pode alguém falar em pós-modernismo, adotar uma perspectiva em relação a ele, sem fazer parte do efeito pós-moderno?" A coletânea de E. Ann Kaplan e os textos de Jameson parecem mais ilustrar a pertinência da pergunta do que contribuir para sua resposta.
Ainda nesta leva de livros sobre o pós-moderno temos "Geografias Pós-Modernas", de Edward Soja, que procura mais uma vez dar consistência metodológica a um problema clássico: o de se é possível fazer-se uma geografia marxista. Pois, como se sabe o marxismo é o mundo da história, da sucessão dialética. Valendo-se amplamente das contribuições de Henri Lefebvre e David Harvey, Soja arrisca-se neste campo, apostando em críticas teóricas e programáticas sobre o assunto. O livro interessa a especialistas.
Mas estes, mais do que nunca, são instados por Soja a não incorrer numa confusão terminológico-metafísica que atrapalha muito os estudos nesta área, e na qual o próprio autor parece cair: a idéia de que "o espaço", em vez de ser simples "espaço", é algo como se fosse um "ser", dotado de materialidade própria, "construído historicamente". E quando se usa este advérbio –historicamente– fica difícil, convenhamos, dar à geografia um plano de igualdade com a dialética histórica proposta pelo marxismo.

Texto Anterior: UNAMUNO; CONTOS; POESIA; CONCURSO
Próximo Texto: MAIS VENDIDOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.