São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Euclides e a Amazônia infinita

ROBERTO VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A floresta amazônica desperta paixões e controvérsias entre os que pregam a sua preservação como patrimônio da humanidade e aqueles que propõem sua utilização racional. É interessante reler hoje um explorador da Amazônia do início do século, como Euclides da Cunha (1866-1909), que tinha uma visão crítica do progresso, mas que defendia a integração da selva pela construção de rodovias e ferrovias. Para ele, a conservação do meio-ambiente não deveria impedir a sua ocupação.
Seus ensaios sobre a Amazônia acabam de ser republicados em "Um Paraíso Perdido". Organizado por Leandro Tocantins, o livro foi editado pela primeira vez em 1986. É uma boa oportunidade para se tomar contato com uma face menos conhecida do autor de "Os Sertões".
Euclides estourou nas letras brasileiras em 1902, com a narrativa da guerra de Canudos e do massacre da vila pelo Exército, que presenciou no sertão da Bahia em 1897. Criticou, com ironia, a inversão de papéis em que as forças da República exterminaram, em nome da civilização, os seguidores de um líder religioso.
"Um Paraíso Perdido" traz artigos e entrevistas de jornal, crônicas e prefácios, cartas, discursos e relatórios. Alguns destes ensaios foram publicados antes em "Contrastes e Confrontos" (1907), em "À Margem da História" (1909) e na "Obra Completa" (1966) de Euclides da Cunha. Tocantins incluiu ainda os relatórios da expedição e a correspondência com o Barão do Rio Branco, existentes no arquivo do Itamaraty. Deu à coletânea o mesmo título do livro sobre a Amazônia que Euclides deixou inacabado. Cabe ao leitor imaginar, em meio a textos diversos, e possível unidade da obra cujos originais se perderam.
Euclides viajou pela Amazônia em 1905 como chefe da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus, na fronteira entre o Acre e o Peru. Recebeu do Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, a missão de preparar o mapa das nascentes do rio. A região era palco, desde 1902, de conflitos de fronteira entre soldados peruanos e seringueiros brasileiros.
Saindo de Manaus na vazante dos rios, tiveram que abandonar os barcos a vapor e fazer grande parte do percurso a pé, com canoas arrastadas a pulso. A embarcação com os mantimentos naufragou.
Chegaram famintos e esfarrapados às cabeceiras do Purus após quatro meses de viagem. Mas desvendaram o mistério da sua ligação com outros rios, feita através de canais abertos pelo homem para o comércio e o contrabando.
Queria integrar, como em "Os Sertões", uma ampla interpretação do Brasil ao tom elevado do clamor por justiça social. Em artigos e entrevistas, denunciou o trabalho semi-escravo nos seringais do Acre como organização criminosa em que o homem, acorrentado a dívidas, trabalhava para se escravizar.
Os ensaios amazônicos são a face menos conhecida da obra de Euclides. Sylvio Rabello abordou a expedição de Purus na biografia "Euclides da Cunha" (1946). Com enfoque regionalista, Tocantins louvou o escritor, em "Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido" (1966), como o primeiro grande intérprete do "brasileirismo amazônico". Mais recentemente, Francisco Foot Hardman e Lorival Holanda trataram da visão do deserto, presente nos seus escritos sobre Canudos e sobre a Amazônia.
Euclides enfocou a selva e o sertão com uma mesma imagem: o deserto. A floresta tropical e a caatinga do semi-árido são vistas como desertos, por seu isolamento geográfico e povoamento rarefeito. São territórios desconhecidos, que os viajantes evitavam e que os cartógrafos excluíam de seus mapas. Paisagens fantásticas que paralisavam o observador tomado por um misto de terror e êxtase. Em carta a Artur Lemos, de 1905, observou sobre a Amazônia: "O forasteiro contempla-a sem a ver através de uma vertigem. É um infinito que deve ser dosado."
Como o cientista alemão Alexander von Humboldt (1769- 1859), que estudou documentos em Paris antes de viajar pela América no início do século passado, Euclides consultou os relatórios das expedições anteriores, sobretudo a do inglês William Chandless em 1861, antes de enfrentar a floresta tropical. Navegou pelos rios Amazonas e Purus com mapas na mão e relatos na cabeça.
No caminho para Manaus, Euclides se desapontou ao entrar no rio Amazonas, que não correspondia ao "ideal" concebido a partir das páginas de Humboldt e de outros exploradores. Só foi descobrir o seu esplendor, depois de ler os trabalhos do naturalista Jacques Huber, que conhecera em Belém, no Museu Paraense de História Natural. O rio se tornou então um "mundo maravilhoso" capaz de estimular a imaginação artística.
Euclides formulou, em seus ensaios amazônicos, uma visão ecológica e humanista. Criticou as condições de trabalho dos seringueiros. Defendeu a preservação das matas e florestas, destruídas pelos plantadores e pelas caldeiras dos barcos e locomotivas a vapor.
Impregnado do otimismo cientifista do século 19, acreditava na marcha da civilização e na absorção do indígena e do sertanejo pelas raças e culturas tidas como superiores. O leitor de hoje deve buscar, neste escritor, muito mais a agudeza de seu estilo irônico e a força exuberante das imagens do que o tom missionário da denúncia social e política.

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