São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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A terapia do dr. Melo Franco

FÁBIO LUCAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Graças à iniciativa meritória de Cláudio Giordano, que já ofereceu, na coleção "Memória" de sua editora, a tradução do "Livro de Jó" efetuada por José Elóis Ottoni, tem-se à disposição do leitor a "Medicina Teológica", obra atribuída por Inocêncio a Francisco de Melo Franco.
Há dois séculos se publicava "Medicina Teológica", causando grande rebuliço. O ano de 1794 lembra outro evento, o da Devassa aberta contra os membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, cuja principal vítima foi Silva Alvarenga. Processo de nítido cunho ideológico: visava a conter a propagação das "idéias francesas".
Francisco de Melo Franco já se havia envolvido com o Tribunal do Santo Ofício em 1779. Os autos de seu processo, assinala Alberto Dines em prefácio à nova edição de "Medicina Teológica", encontram-se extraviados. O médico e poeta mineiro integrou um grupo de 26 jovens acusados de idéias subversivas. O Iluminismo alastrava-se pela Europa, envolvendo-os também, e, graças especialmente ao Marquês de Pombal, uma espécie de "désposta esclarecido", contribuiu para a modernização de Portugal, travado então pela rigidez reacionária da Contra-Reforma.
Que dizia a ficha policial do jovem encarcerado? Com todas as reservas que merecem em qualquer época os assentamentos da polícia política, consta de seu prontuário: herege, naturalista, dogmático, negava o Sacramento do Matrimônio (lista do Auto Público de Fé, que se celebrou na Sala do Santo Ofício, em 26 de agosto de 1781). Envolvido com a Inquisição em 1779, informa-se que o poeta somente logrou bacharelar-se em 1785, quando deveria fazê-lo em 1782.
A "Bibliografia Brasileira do Período Colonial" de Rubens Borba de Moraes (São Paulo, USP/IEB, 1969) registra as obras de Francisco de Melo Franco. Entre elas, a que lhe valeu maior notoriedade, o poema herói-cômico "Reino da Estupidez", que circulou em manuscrito em 1785, anonimamente ou com pseudônimos que comprometeram vários suspeitos (inclusive Antônio Pereira de Souza Caldas, que acabou abraçando a vida eclesiástica).
Afonso Arinos de Melo Franco lembra a hipótese de Pedro Calmon, contrariada por Hélio Viana (e Rubens Borba de Moraes, acrescente-se), segundo a qual "Reino da Estupidez" teria sido escrito em parceria com José Bonifácio ("A Escalada", Rio, Livraria José Olympio, 1968, pág. 147).
Vejamos esta "Medicina Teológica", documento valiosíssimo que possibilita ao leitor estabelecer os liames entre o discurso do autor e a cultura de seu tempo. Há toda uma gama de sinais que poderão alimentar tanto uma investigação historiográfica quanto um estudo antropológico. Afinal, Francisco de Melo Franco propunha uma informação acerca do homem na sua totalidade, corpo e alma.
No seu espírito, "Medicina Teológica" visa dar conselhos aos confessores no sentido de aplicar aos penitentes tanto sanções morais quanto físicas para a sua salvação espiritual, no caso de pecados da lascívia, da cólera e da bebedice.
Para tanto, baseia-se na unidade indissolúvel entre o espírito e a carne. Daí alguns críticos apontarem nele os primórdios da análise psicossomática e até da psicanálise. É longa e metódica a argumentação do médico quanto à reciprocidade dos efeitos da consciência sobre o bem-estar físico e da saúde corporal sobre a paz do espírito.
Neste ponto, o escritor, já calejado de castigos, adota cerrada e piedosa argumentação, sem deixar um momento sequer de exercer a apologia da Igreja e de seu magistério sobre as almas. Seu estilo labiríntico de certa forma oculta ou dissimula opiniões heréticas.
Alarga o conceito de médico para alcançar o exercício da confissão entre as tarefas da cura. Para ele, no Sacramento da Penitência incluem-se os misteres de pai, de juiz, de doutor e de médico. Daí exaltar os confessores à aplicação de penitências físicas e morais, simultaneamente.
Assim, o corpo predisposto à lascívia, à cólera e à bebedice deve ser submetido a corretivos físicos a fim de escapar às atrações pecaminosas. Não se trata apenas, a seu ver, de buscar emenda e punição "no pesar da alma" como queriam alguns teólogos, adeptos de orações, jejuns e disciplinas para subtrair a alma às tentações do demônio, do mundo e da carne.
É que esses "senhores médicos do espírito" olhavam o corpo "como um escravo rebelde e merecedor somente de ser dilacerado com tormentos". Mas, assinala o poeta, o corpo às vezes em nada participa dos segredos da alma, "que é sua rainha e senhora." Daí a necessidade de o confessor ser médico do espírito e do corpo. "Como é possível que haja teólogo sem ser médico!? S. Paulo quer que subamos do conhecimento das obras visíveis de Deus às suas operações invisíveis." (pág. 20).
São curiosas as noções do funcionamento físico do pecado. Baseado na ciência da época, Francisco de Melo Franco alega a união do corpo e da alma através do "suco etéreo" que percorre o sistema nervoso, condutor simultâneo do movimento e do sentimento, de acordo com doutrina coroada na Academia de Paris. O confessor deveria estar informado sobre as conquistas da medicina...
Passa, então, a explicar a fisiologia das paixões, inclusive do amor, tese que curiosamente haveria de estar em voga na mente dos adeptos do naturalismo de Zola. Em postura alarmista, coloca a satiríase e o furor uterino no mesmo plano da hipocondria, do histerismo, da lepra e da tísica, doenças contagiosas que levam à morte, a seu ver. E pondera: o amor é enfermidade que pode desdobrar-se na loucura. Condena ferozmente a erotomania, mesmo no casamento regular, já que os "excessos venéreos" conduzem à morte.
Acaba receitando incontáveis récipes de anti-afrodisíacos para acalmar os fervores amorosos de homens e mulheres. Indica, igualmente, sedativos da cólera. Só não atina com o melhor remédio para a bebedice, embora forneça emulsões apropriadas para tornar repugnante o abuso da bebida alcoólica: "A bebedice é uma grande enfermidade que nunca se cura com remédios morais e dificilmente com os físicos", reza o título do capítulo 20.
Para as situações pecaminosas, receita uma "dietética sagrada" extraída das Escrituras, sempre buscando a saúde do corpo para alcançar a alma. Curioso é que, para a perfeita sanidade física, aconselha constante vida alegre, obtida graças a cantar-se os salmos, orar mental e vocalmente e ao uso moderado do açafrão e do aipo. A fim de se conseguir a paz, recomenda a confissão como o melhor remédio.
Neste ponto, insinua uma terapia através do discurso confessional. A seguir, recomenda ar puro aos penitentes e moderação na comida, baseada em pão, ervas e legumes, "comida dos santos". No campo das bebidas, preceitua o consumo de água, "remédio universal para todas as enfermidades" (pág. 142). Por fim, aconselha a moderação no sono, a vigília e atividade física: pintar, ler, bordar, etc. Nada de ociosidade.
O final da "Medicina Teológica" vem a ser o elogio da confissão: "Descobriu-se uma medicina que, mudando os nossos ditos maus hábitos, nos faz possuir no corpo e na alma uma saúde perfeita." (pág. 153). Vale a pena conhecer os meandros do pensamento do controvertido pensador Francisco de Melo Franco, desfrutando da sua exótica "Medicina Teológica".

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