São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Sob o domínio de Eros

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Se fosse necessário apresentar o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, que acaba de lançar na França "A Chama Dupla - Amor e Erotismo", a apresentação não deveria ser feita pelos tantos prêmios literários que ele recebeu.
A uma jornalista que lhe perguntou se ele acaso não temia ficar colado à imagem que a notoriedade lhe dava, ele respondeu: "Não acredito nessas consagrações. A única consagração é um leitor capaz de dialogar com a gente. A vida inteira as minhas opiniões foram minoritárias."
Precisamente por querer o diálogo, ele lança agora este ensaio sobre o amor, que não cessa de reenviar o leitor à sua própria experiência e de fazê-lo considerar as diferentes idéias do texto.
Escrito para convencer-nos do caráter historicamente subversivo do amor que, contrariando a tradição ocidental, enobreceu o corpo, o livro é um ensaio de poeta.
Tendo em vista "A Dupla Chama", fui ao encontro de Octavio Paz, que completou 80 anos em março, no Hotel Lutécia, onde ele falou à Folha no mesmo dia em que lançava o livro em Paris.

Folha - O sr. diz na introdução ao livro que, antes de escrevê-lo, hesitou muito, e que o fez com um "desespero alegre". Que relação o senhor estabelece entre a escrita e o amor?
Octavio Paz - Há uma relação íntima quando se trata de um certo tipo de escrita, a escrita literária, a poesia ou o romance. Há muitas formas de escrever. Quando a gente quer expressar algo de muito profundo escreve um poema ou um romance, procura assim objetivar a paixão.
Em geral, a escrita nasce de uma vocação, a gente está condenado a escrever sobre certos temas. Você, que é escritora, sabe disso. Acontece a mesma coisa no amor, que começa com uma atração involuntária –a que a gente está destinando– e depois se converte, através do livre-arbítrio, numa forma de liberdade.
Folha - O sr. utilizou a palavra "condenado". Em que medida existe um livre-arbítrio?
Paz - Trata-se de uma questão tão antiga quanto a filosofia. Não há resposta e as respostas que eu encontrei me parecem igualmente insatisfatórias. Há uma eterna relação entre a palavra destino e a palavra liberdade.
Os gregos viram isso muito bem. Para que o destino se realize é necessário que ele conte com a cumplicidade dos homens. Para que Édipo cumpra o seu trágico destino, ele tem que escolher voluntariamente, sem saber o que está fazendo, claro.
Quero dizer que, em cada ato humano, há uma dose de determinismo, mas este determinismo não pode se realizar sem a liberdade. Esta, por sua vez, para se realizar, necessita do destino. Podemos dizer que, se a liberdade é uma condição da necessidade, o inverso também é verdadeiro. Não há como considerar separadamente a palavra "destino" e a palavra "liberdade". Os dois termos estão perpetuamente em luta e um não vive sem o outro.
Folha - Por que o sr. escolheu o amor como tema...
Paz - Escrevi-o com um "desespero alegre" porque o escrevi no final da minha vida, mas o que importa é que eu o escrevi. Por que o fiz? Desde que comecei, quisera ser, quisera ter sido... A gente até começa a falar no passado... Bem, quisera ter sido poeta. Os meus melhores poemas foram de amor. Às vezes foram poemas eróticos. O tema do amor é uma das minhas obsessões, um dos eixos em torno dos quais girou a minha vida pessoal e também a minha vida intelectual.
Folha - Sim, mas por que o senhor escreveu um ensaio?
Paz - Porque queria explicar o amor para mim mesmo. Quando comecei a escrever poemas, eu me disse que precisava escrever algum ensaio para justificar o ato aparentemente absurdo de escrever poemas. O mesmo ocorreu com o amor.
Folha - O sr. afirma que Platão teria ficado escandalizado com o que nós chamamos amor. Seria possível comentar isso?
Paz - Para Platão, o amor não tinha o sentido que damos ao amor e que surgiu na Idade Média com a poesia provençal. O amor para ele era o erotismo, a ação de Eros, o deus da luz e da escuridão, o mensageiro, a força atuante. Platão concebia o amor como um desejo de beleza, que terminava na contemplação das idéias eternas. Ademais, o amor não se dirigia a uma mulher e sim aos efebos.
O amor de que falamos, e que hoje pode ser homossexual, nasceu como uma paixão heterossexual. Nele existe um gosto pelo sofrimento, pela tragédia, como em Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta, que teria escandalizado Platão.
O amor também escandalizou os cristãos, pelo fato de se colocar numa criatura humana o que é próprio da divindade. Lope de Vega diz que, no amor, a gente busca o eterno no que é perecível. O amor é uma blasfêmia para a Igreja; ele é subversivo diante da filosofia e da religião.
Folha - O sr. diz que o amor é uma aposta extravagante na liberdade, pois o livre-arbítrio transforma uma atração involuntária entre duas pessoas em união voluntária. Isso é bastante claro quando pensamos em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta. Mas "História de 0", o romance, acaso não é uma aposta extravagante na servidão?
Paz - A questão é muito interessante. Mas "O" decide porque ela ama René, que deseja se deixar escravizar. Os estóicos pensavam que só se pode afirmar a liberdade dentro dos limites do destino. Epicteto dizia que o escravo tem a liberdade, pelo menos no seu interior, de dizer não. O mesmo ocorre com "0", que é uma mulher livre e se vale da liberdade para se converter numa escrava.
Folha - Cabe perguntar se "0" teria podido dizer que não queria ser escrava ou, em outras palavras, se ela teria tido a possibilidade subjetiva de escolher a posição de quem não é escrava...
Paz - Sim, poderia ter recusado o amor. Creio que "0" escolhe a servidão porque está apaixonada. Todos os apaixonados, no fundo, seguem "0", na medida em que todos aceitam a servidão. Na poesia provençal, que codificou o amor, se diz que o apaixonado é um vassalo e a amada é uma senhora. Mas o apaixonado decidiu se converter em vassalo por estar apaixonado, ele não nasceu escravo. A origem de }0 se encontra na poesia provençal. Se }0 fosse somente masoquista, ela seguiria as suas inclinações eróticas e ponto final, mas ela está apaixonada.
Folha - O sr. não acha que o amor implicaria numa revisão completa da noção de escolha?
Paz - Sim, porém o amor lança luz sobre a relação entre necessidade e liberdade, sobre o livre-arbítrio, o grande tema do teatro espanhol.
Folha - O amor move o sol e as estrelas, mas não se dissocia do ódio e pode se tornar mortífero. Por que o sr. só fala do amor como um bem?
Paz - Mencionam com frequência o caráter mortífero do amor. Possivelmente eu falo dele sobretudo como um bem por uma reação contra esta predileção do século 20, predileção pelos lados negros do amor. Trata-se também de uma reação contra a exaltação do Marquês de Sade... Mas eu penso que o ódio é inseparável do amor.
Folha - Existe mesmo o conceito de "hainamoration" em Lacan...
Paz - O quê?
Folha - "Hainamoration", um neologismo que junta o ódio (haine) e o amor (amour).
Paz - Os psicólogos dizem de modo mais ou menos pedante o que os poetas dizem de forma simples. Catulo diz num poema famoso: "Amo e odeio ao mesmo tempo/ Por quê? / Não sei, mas eu disso padeço". É magnífico, em quatro versos diz o que os psicólogos e os psicanalistas precisam de mil páginas para dizer (risos).
Folha - O sr. diz, no seu livro, que o amor é incompatível com a infidelidade. Isso acaso significa que a revolução erótica deste século não mudou em nada a noção tradicional de infidelidade?
Paz - A revolução erótica nos trouxe uma idéia mais limpa do corpo... O amor não existe sem a liberdade feminina. Por isso, desde o início, os grandes períodos do amor coincidiram com a liberdade da mulher ou com a sua rebelião. Afinal de contas, Isolda se rebelou, Julieta também...
Folha - Um simples encontro erótico é um ato de infidelidade?
Paz - Sim, em geral sim, porque o amor está fundado na união do corpo e do espírito. No passado, havia o problema da paternidade. Hoje, a infidelidade é menos grave porque não interfere na procriação, mas o amor parte da decisão de que "iremos juntos até o final".
Folha - Será mesmo que a revolução erótica não implica que possa haver fidelidade do espírito e liberdade do corpo?
Paz - Parece complicado. As experiências dos que tentaram esse tipo de amizade amorosa não deram certo. É muito difícil evitar o sofrimento do companheiro. A infidelidade, em si mesma, poderia não ser grave, mas fere profundamente o outro. Isso, todos nós sabemos pela experiência.
Folha - Os autores árabes celebram os amores castos. Qual a diferença entre a erótica árabe e a platônica?
Paz - A idéia da castidade é uma idéia muito antiga. No Oriente, nasce da idéia de que toda descarga sexual implica em perda de vida. É preciso ser casto para conseguir mais vida. A castidade é uma receita de imortalidade. No taoísmo e no ioga, a castidade existe para que o sujeito tenha mais controle sobre si mesmo.
No caso de Platão, a castidade está ligada ao dualismo do corpo e da alma e à necessidade de salvar esta. Cada ato sexual, para ele, é uma queda no mundo informe da matéria. Nós amamos uma forma, porém no momento em que a abraçamos, ela se dissolve. Isso, para mim, é maravilhoso, porque é um contato com o universo. A visão de Platão era diferente.
Folha - O senhor escreve que a maior defesa contra a Aids é o amor, por implicar na fidelidade. A sua posição é a do papa...
Paz - Possivelmente, mas D.H. Lawrence já dizia que o papa sabia mais do sexo e do erotismo do que os tratados todos.

ONDE ENCOMENDAR:
"La Flamme Double - Amour et Érotisme" (ed. Gallimard), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011 231-4555)

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