São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Coisa do Gomes

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – O pessoal que foi para a Copa anda estranhando a falta de entusiasmo do americano médio em relação ao futebol. Tirante as minorias latinas, o povão de lá não está dando muita bola ao campeonato mundial de um esporte que eles não entendem nem amam. Para o espírito competitivo dos americanos, é absurdo haver empate numa partida. E os escores também contribuem para o desinteresse: estão habituados a outras modalidades de jogo em que a movimentação do placar é mais espetacular.
Há outro fator, ainda: o americano médio é chegado à ingenuidade, acredita que o bem vence o mal, a cavalaria americana sempre aparece no final para salvar os heróis que defendem o forte. Quando não é a cavalaria, é o próprio Deus que abençoa a América.
Já o brasileiro é um povo que perdeu a ingenuidade. Acredita sempre no pior, espera o pior e se habitua a viver na pior.
Uma viagem de navio é sintomática. Para passar o tempo, a rotina de bordo estabelece torneios disso ou daquilo. É fácil identificar o americano: está em todas, participa convictamente de qualquer baboseira, leva a sério os mais inacreditáveis torneios. Nos jantares à fantasia, são os mais animados, aparecem com roupas esquisitíssimas: estão pagando para se divertir e se divertem com direito a tudo.
É fácil também identificar o brasileiro: fica pelos cantos, com cara de reprovação ou náusea, acha qualquer brincadeira "coisa de veado", só se assanha se vislumbrar mulher dando sopa, se entusiasma diante de qualquer possibilidade –por mais remota que seja– de qualquer prevaricação.
Isso sem contar aquele gesto de coçar certa parte do corpo –um emblema tão nacional, tão coisa nossa como a "Aquarela do Brasil", o Cristo Redentor e a detestável pronúncia de qualquer idioma que não seja o português.
O futebol-associado tem o lado hedonista que o brasileiro cultiva e que o americano teme –herança puritana dos peregrinos do "Mayflower". Não adiantou Pelé ter jogado no Cosmos. Não adianta Copa do Mundo. É o mesmo que impingir o angu do Gomes a um paladar habituado ao cachorro-quente com ketchup.

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