São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Os intelectuais, a política e a sucessão

MARCO AURÉLIO GARCIA

"Nossa herança não foi precedida de nenhum testamento." A frase de René Char, citada por Hanna Arendt ("A Crise da Cultura") a propósito da intelectualidade européia no pós-guerra, pode aplicar-se hoje a muitos dos intelectuais brasileiros.
Em 1964, já em seus primeiros meses, a ditadura enfrentou a resistência dos intelectuais. Mais tarde, à medida que se aprofundava a crise do regime militar, e se multiplicavam sinais de um renascimento da sociedade civil, particularmente do movimento operário, começava a produzir-se uma divisão entre os intelectuais sobre os caminhos que conduziriam à democracia e sobre o conteúdo mesmo que ela teria para nós brasileiros.
Esta divisão teve como pano de fundo a crise que passaram a viver nos últimos anos os dois grandes paradigmas socialistas deste século –o comunista e o social-democrata– que haviam exercido influência sobre as esquerdas brasileiras.
O que sobrou da herança comunista, inclusive de suas vertentes críticas, revelou escassa capacidade para explicar e propor alternativas à crise brasileira, deslizando muitas vezes para um fundamentalismo ideológico.
Já a social-democracia, de pouca tradição no Brasil, travestiu-se em liberalismo econômico, seguindo os descaminhos neoliberais dos socialistas instalados em alguns governos europeus.
Não é surpreendente, assim, que Collor tenha se autodefinido mais de uma vez como "social-democrata", preferência política reivindicada irresponsavelmente por muitos conservadores.
Nesta noite onde todos os gatos são pardos, o espectro político-ideológico brasileiro parece começar na esquerda e terminar no centro, nada sobrando para a direita.
Grosso modo, a cisão de uma intelectualidade que havia, mais ou menos unida, enfrentado o regime militar surgiu no período de declínio da ditadura. É sintomático que os dois caminhos propostos tenham se delineado quando ocorreu a emergência do movimento operário, particularmente através das greves de 78-80. De um lado, a transição era pensada essencialmente como um processo de engenharia política e que deveria apoiar-se em setores do próprio regime para operar a passagem a uma democracia.
O modelo partidário sugerido por alguns, dentre eles o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, era o do partido-ônibus, basicamente inspirado no Partido Democrata dos Estados Unidos. Esse tipo de organização fracionou-se na medida em que o ônibus se pôs em marcha, quando alguns parecem ter constatado que havia batedores de carteira no veículo.
De outra parte, a democracia era pensada basicamente como construção, criação e ampliação de um espaço público onde se produziriam novos direitos, daí porque ela deveria enfatizar seus aspectos sociais.
Esse projeto, que levou à formação do PT em 1980, e que impactou parte significativa da intelectualidade brasileira, procurava construir um novo modelo econômico centrado na idéia de que a resposta ao esgotamento do tipo de desenvolvimento seguido nos últimos 60 anos –concentrador de renda e autoritário– passava por uma política econômica que centrasse suas preocupações no fim da exclusão social.
Buscava-se assim superar velhos, repetidos (e falsos) dilemas como os de primeiro crescer para depois distribuir. Como se o desafio não fosse crescer distribuindo, fazendo da distribuição um fator determinante do crescimento e, inclusive, da sonhada estabilização.
As implicações políticas de uma tal visão eram óbvias e se viam reforçadas pela evolução dramática do Brasil –a aventura Collor e seu atrativo inclusive sobre uma certa parte dos intelectuais brasileiros–, mas também pelo que ocorria na América Latina ("fujimorazo", entre outros fenômenos).
Não haveria (haverá) democracia política se não houvesse (houver) democracia econômica e social. A construção da democracia só poderia (pode) se fazer com democratas. O que pode parecer um truísmo tem, no entanto, um significado mais profundo.
Uma aliança para a democracia exige não só compromisso com a democratização das instituições do Estado, mas com a democratização da sociedade, da vida econômica, das relações de trabalho. Sem esse tipo de radicalismo (saudável e necessário) não há democracia.
E aqui entramos fundamente na questão das alianças sociais e políticas para a construção da democracia. Este é um tema que parecia estar resolvido para os intelectuais brasileiros que resistiram ao autoritarismo nos 60 e 70.
Mas o esquecimento de idéias hoje pregado leva alguns a renegar a denúncia do reiterado processo de conciliação das elites, que frustrou todos os processos históricos em que a questão da reforma social esteve na ordem do dia no Brasil, pelo menos desde a Abolição.
Será que a preocupação eleitoreira, demagógica e de mau gosto de ter um pé na cozinha (ou na "cuisine"?) fez esquecer que o grande problema que entorpeceu a mudança neste país foi o da conciliação de querer ter um pé na senzala e o outro na casa-grande?

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