São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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O fino e o grosso

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Nascido no sertão, barba emaranhada, dedo mínimo amputado por um acidente de trabalho, ele acomoda seu corpo volumoso na poltrona, puxa do bolso um invejável charuto cubano, saboreia o licor e, num esfalfante e aflitivo esforço para não macular a língua de Machado de Assis, começa a dissertar sobre a necessidade de as classes abastadas manterem a confiança no Brasil.
A sua frente, um grupo de capitalistas ouve atentamente a conversa. Concentrado, ele vai atravessando com esmerado equilíbrio a corda bamba da qual, ao menor descuido, poderá despencar. Diz que é imprescindível a colaboração do capital estrangeiro, defende a bandeira da livre-iniciativa e endossa históricas aspirações burguesas e pequeno-burguesas: "Abrir um negócio é hoje uma reivindicação tão legítima quanto ter casa própria".
Sua postura, tanto quanto possível, tenta conduzir-se segundo códigos assimiláveis pelas classes dirigentes. Não quer ser apenas digerível, mas confiável.
O grosso faz tudo para parecer fino.
Nascido na antiga capital da República, descendente de homens públicos, educado nas melhores escolas, com o espírito e os modos esculpidos pelo refinamento francês, ele acomoda suas nádegas sobre o arreio, apruma o chapéu de couro, sorri e põe o animal em movimento.
A sua frente, uma multidão de famélicos. Num esforço igualmenete esfalfante e aflitivo para contornar a língua culta que a boa educação inculcou-lhe, tenta explicar ao povo as vantagens do consenso de Washington. Fala sobre a terra prometida da estabilidade e apregoa as vantagens do ajuste econômico.
Tenta, de forma semelhante, conduzir-se segundo códigos assimiláveis pelas classes populares. Contempla sua tez morena e afirma: "Sou um mulatinho". A seguir, arregaça as mangas e mergulha numa buchada de bode.
O fino faz tudo para parecer grosso.
Pasmo, o país vai assistindo essa tragicômica modalidade de teatro social em fase de ensaio. Quem estará se saindo melhor no"laboratório" (para usar a expressão do meio teatral para a fase em que os atores tentam incorporar ou entrar em seus personagens)?
É difícil dizer. Mas as tentativas de Lula em ser fino parecem surgir aos olhos da platéia com mais credibilidade do que as de Fernando Henrique em mostrar-se grosso. Sua biografia o autoriza a endossar comportamentos de elite. Fez uma empolgante carreira e colocou-se num lugar que a história dificilmente reservaria para alguém com seu perfil.
Já o príncipe da sociologia, embora tenha, entre tantos outros méritos, o de ter assumido corajosamente a passagem da academia para o mundo imperfeito da política real, tem contra si a imagem de que seu percurso foi menos pedregoso. Além da desconfiança natural que cerca aqueles que têm vida confortável e tentam mostrar-se gente do povo. O grosso que quer ser fino é, afinal, alguém que quer melhorar. Mas o fino que tenta ser grosso pode parecer alguém que tenta enganar.

Ilustração: "O príncipe encantador", 1948, Magritte

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