São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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O governo e Pilatos

ANTONIO CELSO NUNES NASSIF

O governo não vai estabelecer regra de conversão para a URV no caso dos planos de saúde. Preferiu não interferir e deixar mais de 35 milhões de usuários jogados à própria sorte. Como se os que intermediam a saúde no Brasil possam ser considerados "bonzinhos", que não se preocupam muito com o lucro, e por isso não vão reajustar além do necessário e ético.
Incrível foi a solução proposta pelo governo aos usuários do sistema: negociar com a empresa ou mudar de plano. Realmente fazer tal proposta é desconhecer completamente a intimidade dos convênios e o funcionamento dos respectivos contratos.
Quando uma pessoa faz um contrato com algum plano de saúde fica totalmente à mercê da empresa, pois as respectivas cláusulas são sempre desfavoráveis ao usuário. Primeiro vem a carência mínima de seis meses, depois as restrições a determinadas patologias que, na hora do reembolso, são quase sempre consideradas preexistentes.
Os reajustes sucessivos continuam sendo prerrogativa exclusiva da empresa que não precisa consultar o usuário. Se este deixa de pagar a mensalidade no dia do vencimento, perde imediatamente o direito a assistência médico-hospitalar e assim não consegue qualquer tipo de guia ou autorização.
Como então esperar que um usuário possa negociar o reajuste ou a conversão? Seu poder fica reduzido a zero. Se ele decidir mudar de plano, vai ter que começar novamente todo o período de carência na outra empresa, sem direito a nenhum atendimento. Ainda mais, se não concordar com a conversão, terá seu contrato cancelado.
O governo exigiu do Congresso aprovação da Lei Antitruste contra os oligopólios e outros exploradores do povo. Ótimo! E o que representam estes grandes grupos de seguradoras, de medicinas de grupo e outras similares que andam por aí? Não são oligopólios? Trustes? Ou será que os 35 milhões de usuários é que são?
Que país é este onde a população já não tem assistência dos serviços públicos de saúde porque estão falidos e quando, com sacrifício dos seus salários, busca uma medicina alternativa através dessas empresas é então "jogada às feras"? O governo não pode fugir das suas responsabilidades para com os direitos de cidadania.
Precisa, sim, intervir nessas empresas, fazer auditorias sérias em todas elas, levantar a variação patrimonial de cada uma nos últimos dez anos, verificar o percentual de lucros auferidos no período (certamente altíssimos), analisar custos médico-hospitalares e, desta forma, determinar as regras da conversão que venham proteger os usuários do sistema.
Se o sistema público de saúde fosse bom e atendesse qualitativamente bem a todos que dele necessitam, esses usuários que hoje participam dos planos de saúde lá não estariam, não teriam nenhuma despesa nem os sobressaltos costumeiros provocados pelos empresários da saúde.
Os milhões de usuários do sistema de convênios e planos de saúde não podem ser "cristianizados" pelo governo que quer "lavar as mãos" como Pilatos.

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