São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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'Vício Frenético' é uma descida ao inferno

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"

"Vício Frenético" é o filme que dá razão à crítica internacional por apostar tanto no talento do diretor Abel Ferrara. Cultor de um universo povoado por fantasmas, em que religiosidade, sexo, drogas e violência se misturam,Ferrara avançaincessantemente por caminhos perigosos que a maioria dos mortais luta para evitar.
Aqui, o caminhante solitário é um tenente da polícia de Nova York, vivido por Harvey Keitel, um mau tenente, como define o título original. Mau, talvez, porque não frequenta apenas o lado bom,justo da lei.
Muita verdade insurge deste drama no qual a lei é encarada sob sua dupla face. De um lado, o policial tenta apurar um crime, o estupro de uma freira por marginais o interior de uma igreja. De outro, mergulha fundo na face complementar da lei, consome cocaína o tempo todo, abusa sexualmente de garotas que detém para averiguação, dá cano no "bookmaker" que sustenta seu outro vício, apostas em partidas de beisebol.
A preferência que Ferrara nutre por situações desconexas indica um interesse por um realismo de natureza brutal, que acaba destoando da produção cinematográfica norte-americano recente.
Em seu cinema vigora uma total descrença na unidade e na permanência das coisas, em suma, na verdade. Seus personagens vivem à beira da desintegração. Exemplo é o casal vivido por James Russo e Madonna em "Olhos de Serpente", recentemente exibido nos cinemas. Ali, o dilaceramento a que se expunha o casal se reproduzia e
acabava por contaminar todos à volta.
Essa atração pelo abismo parece provir de uma visão religiosa bastante peculiar ao diretor. O drama da freira em "Vício Frenético" funciona como uma metáfora para a desorganização existencial que o mau tenente sofre. A queda pelo sacrifício passa a funcionar como o único movimento capaz de dar algum sentido a vivências em vias
As imagens recorrentes de Cristo crucificado reiteram esta crença no sacrifício como etapa necessária no movimento de redenção. A vida é vista como um inferno na Terra e as várias experiências do mal –sexo, drogas, violência– adquirem aspectos ambíguos, pois é através delas que os personagens visam a libertação.
Neste mundo em que a freira violentada confessa ser incapaz de transformar o esperma amargo no doce sêmen que vivifica, toda verdade já se ausentou. Quando o caso está em vias de solução, o tenente reassume seu lado mau e se abandona às forças do destino.
Sem o álibi de uma fé exterior, os personagens de Ferrara passam a agir como vampiros de si mesmos.
Um dos diálogos do filme resume esta idéia: "Os vampiros têm sorte. Alimentam-se dos outros. Nós temos que comer a nós mesmos. Temos que comer nossas pernas para ter energia para andar. Temos que vir para poder ir. Temos que nos sugar. Temos que comer a nós mesmos até restar somente o apetite. Nós damos e damos... Eu não acho que a gente tenha que fazer sentido".

Vídeo: Vício Frenético
Direção: Abel Ferrara
Produção: EUA, 1993
Elenco: Harvey Keitel, Victoria Bastel
Lançamento: Top Tape (tel.
011/257-6300)

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