São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Varèse quer conjugar música e ciência, diz Boulez

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DO "LA REPUBBLICA"

A cidade italiana de Milão rende homenagem este ano, em seu festival Milano Musica, ao compositor Edgard Varèse (1883-1965), "o furacão mítico", nas palavras de Pierre Boulez.
O regente francês dirigiu ontem, no Teatro alla Scala, seu Ensemble Inter-Contemporain na execução de "Ofrandes" e `Intégrales", duas composições de Varèse dos anos 20.
Varèse é o rebelde da música do século 20, o compositor das instituições insensatas, o amigo dos surrealistas, aquele que detesta "a música que conta uma história", aquele que se lança contra "o mexerico que é a melodia".
É o inventor de vórtices rítmicos, sons irmãos dos rumores industriais, profecias da música eletrônica.
Em Paris, Pierre Boulez, um dos maiores conhecedores do gênio criativo de Varèse, concedeu esta entrevista ao jornal italiano "La Repubblica".
"A obra de Varèse vive da utopia romântica da conjunção entre música e ciência. E a ciência o interessa justamente enquanto um projeto utópico, uma projeção no mistério. É possível sonhar a partir de termos como `buraco negro' ou de descrições como a de fortes massas de energia em pequenos volumes. Varèse queria ligar à criatividade estas impressões irracionais. Tinha uma visão grandiosa do universo, que queria captar em sua música".
Leia abaixo outros trechos desta entrevista.

Pergunta - Antes de sua transferência aos EUA, em 1915, Varèse se liberou das partituras compostas até aquele momento, destruindo-as ou perdendo-as entre Paris e Berlim. Porque tanta fúria?
Resposta - É um mistério, como muitas partes de sua vida. Influenciado no início por Richard Strauss, foi provavelmente o único compositor que foi viver na Alemanha antes de 1914, dado o clima hostil à Alemanha que vigorava na França antes da guerra. Fugiu para a América, onde ficou ativo até que o neoclassicismo se tornou o motor da vida musical nova-iorquina. Naquele momento, ficou isolado, distante do neoclassicismo, de Bartók (que considerava muito ligado ao folclore) e da escola de Viena, muito teórica para ele e também ligada ao germanismo que ele havia renegado.
Pergunta - Cortar as raízes, negar as tradições. Não era ilusória a tentativa dele de cancelar a história?
Resposta - Era esta a escolha de todos os artistas na Nova York dos anos 20, uma cidade de vanguarda, aventurosíssima. Com a guerra, a chegada na América de artistas como Mondrian, Masson, Max Ernst e Chagall provocou o crepúsculo da arte populista. Na música, o influxo dos exilados foi menos determinante que na pintura. Bartók era marginal, e só as últimas encomendas lhe deram alguma fama. Stravinski não escreveu suas obras mais importantes nos anos de guerra. A influência de Hindemith se limitou à pedagogia. Varèse era uma lenda reservada a poucos, um ácido utopista que lutava contra a memória.
Pergunta - Um tema querido também para Boulez, que denuncia a "avalanche da memória que nos está sepultando"...
Resposta - Hoje, mais do que nunca, com os sistemas informatizados, o homem acumula um patrimônio absurdo de memória. A mania de arquivos entrou até na interpretação, com a contínua proposta de gravações históricas. Uma civilização que se preocupa mais com o passado que com o presente corre o risco de morrer. Em um século, isso pode acontecer. As civilizações bárbaras são as mais fortes. Quem vive em uma biblioteca pega um resfriado e morre quando sai.

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