São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Cem milhões em ação

OTÁVIO FRIAS FILHO

Otavio Frias Filho
A estimativa do Tribunal Superior Eleitoral é a de que 100 milhões de pessoas vão votar em outubro. Estarão em jogo 1.700 cargos, a serem retalhados entre 37 partidos; 2 milhões de "simples cidadãos" serão obrigados a ajudar na apuração.
A eleição de Collor foi a primeira em que mais da metade da população estava habilitada a votar. Apesar dessa vitória demográfica, as regras eleitorais continuam inspiradas pela idéia de que o eleitor é uma espécie de imbecil, que precisa ser protegido de influências nefastas.
A lei aprovada no ano passado pode até contribuir para uma melhor fiscalização das finanças da campanha, o que é duvidoso. Desce aos menores detalhes no empenho de garantir a igualdade entre os candidatos. Mas em vez de aumentar a liberdade do eleitor e reduzir a dos políticos, faz justamente o contrário.
As pesquisas, por exemplo, vêm sendo o mais importante instrumento de esclarecimento eleitoral desde meados da década passada. A lei manda que os dados estatísticos sejam submetidos à Justiça, onde ficam à disposição interesseira dos interessados em impugná-los. Mas quanto à contabilidade das doações, basta que os partidos mantenham a lista em seus arquivos por cinco anos.
No dia da eleição, qualquer "manifestação" destinada a influenciar um eleitor dá prisão. O voto, é claro, continua obrigatório pela Constituição, como se alguém pudesse ser compelido a exercer um direito. Votar nulo felizmente não é crime, embora seja malvisto. Mas vender bebida é proibido, porque o eleitor não sabe o que faz.
No que se refere à televisão, que é o que importa para qualquer político, a lei não deixa por menos. Exige tratamento "equânime" nos noticiários, o que significa ou tratamento desigual ou violar a liberdade de prestação de informações. Proíbe programa que "possa ridicularizar candidato", banindo na prática a sátira política –verdadeiro escândalo num país democrático.
Até um filme que "prejudique" algum candidato, "mesmo que de maneira subjetiva", está vedado. O fato de ninguém protestar contra condições tão humilhantes só mostra o quanto essa mentalidade de tutela está arraigada, como é profunda a nossa crença de que o brasileiro não sabe votar.
Mas ninguém sabe votar. O acerto do voto nunca pode ser comprovado. Faz parte da essência da democracia esse relativismo, a imprevisibilidade cega, o jogo errático dos acasos. A própria noção de que a maioria decide melhor é quase mística. Sua única base racional está na conveniência prática de se compartilharem responsabilidades.
Mais democrático seria expor o eleitorado ao caos das influências, se é que acreditamos na sua capacidade de se auto-educar na tentativa e erro. O eleitor que muda o voto sob pressão da boca-de-urna merece (ou quis) ter a sua escolha definida assim. Na loteria eleitoral, a opção do embriagado vale tanto quanto a do presidente da Fiesp.
Claro que a lei precisa ser cumprida. Mas ao aplicá-la, bem que a Justiça Eleitoral poderia ter em mente que o voto é um momento de expansão, não de restrição das liberdades.

Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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