São Paulo, sexta-feira, 24 de junho de 1994
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Renato Russo exorciza paixão em disco solo

BIA ABRAMO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Renato Russo está lançando um disco "três-em-um". "The Stonewall Project" comemora os 25 anos de Stonewall –rebelião de homossexuais que se seguiu à invasão pela polícia de um bar gay em Nova York em junho de 1969– e vai ter 50% dos royalties revertidos para a Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza.
Por fim, traz uma lista de diversas organizações não-governamentais (ONGs) que trabalham pelos direitos da criança, da mulher e das minoria sexuais, "para ajudar ou pedir ajuda".
Em entrevista à Folha, Renato fala do projeto do disco, do repertório "brega-operístico-sentimental" e conta a história da paixão que inspirou "The Stonewall Project".

O projeto
O projeto nasceu numa reunião na da campanha do Betinho na casa do Marco Nanini. Pensamos em fazer um recital com as músicas que eu canto sempre, como algumas canções do Gershwin, mas o recital acabou nunca dando certo, sempre tinha alguém viajando. Mas a idéia foi ficando legal.
Na época. eu estava assustado com o ressurgimento do fascismo. Eu havia lido uma reportagem sobre os carecas num jornal do Rio que me assustou muito. Ela foi concebida como uma reportagem de moda e os carecas estavam lá dizendo: "Vamos bater em todo mundo, vamos matar todos os metaleiros".
Eu pensei: vai começar tudo de novo. Eu também queria usar o disco para me expressar emocionalmente acerca da minha orientação afetiva. Depois surgiu a idéia de usar também o disco para divulgar informações sobre ONGs que trabalham com os direitos da criança, da mulher e das minorias sexuais propriamente ditas.
Tem tanta gente fazendo um trabalho legal e tão pouca gente sabe. No Rio, por exemplo, não tem catálogo telefônico desde 87. Tem um livro meio esquisito, no qual está escrito, bem grande: este livro não é um catálogo telefônico.
Eu fiz esse disco para mostrar que a gente tem dignidade, que tem pessoas legais trabalhando pelas diferenças. O fascismo é muito perigoso, daqui a pouco se você não for macho, adulto e branco, você está perdido.

Intolerância
Em momentos de caos, de desestruturação da sociedade, existe sempre o perigo do fascismo. Dado o medo das pessoas de uma crise maior, elas se protegem na tradição, família e propriedade. Eu acho que não é uma coincidência que existam tantos programas religiosos na TV hoje em dia. Porque aí é Jesus quem vai te salvar ou o seu sonho de consumo vai te salvar... O planeta todo está um caos.

Brecht
Eu estava lendo Brecht, depois de anos –gente, aquilo lá parece que foi um menino da UNB que escreveu, mas batata, está tudo lá. Tem uma frase que diz: "Quando os governos começam a dizer que não vai ter guerra é porque a guerra já está acontecendo".

Paixão
"The Stonewall Project" é um disco sobre paixão. Eu precisava exorcizar aquela coisa de você se anular por uma pessoa. Eu escolhi canções que tivessem a ver com a história da grande paixão da minha vida. Eu vivi uma relação muito intensa, muito difícil com um americano. Ele vivia no gueto de San Francisco –era gay de carteirinha. Ele veio aqui para o Brasil –ele era lindo, louro– e as meninas deram em cima. Aí veio aquela coisa do macho, porque todo homossexual masculino é macho, não adianta.
Ele era dependente químico também, a gente viveu uma relação Sid & Sid. Ele, de speed, e eu, de álcool e tranquilizantes. "Vento no Litoral" fala justamente disso : "Lembra que o plano era ficar bem", era o nosso plano. Só que não deu certo.

Modelos
Eu não acredito mais em amor romântico. Dada minha orientação sexual, não existem modelos. Não existe "E o Vento Levou" para mim. Eu não sei como as pessoas se comportam.
Eu sempre tive um espírito sensível e sempre tive que me comportar de uma maneira. De repente, aquilo estava me fazendo mal.
Minha dependência de drogas tinha a ver com isso. Eu pensava: será que vou ter que ficar uma tia velha, será que eu vou ter que ficar sozinho? Será que tenho que desmunhecar, será que sou uma bicha louca?
Eu já namorei mulheres, tenho um filho. Mulher é uma coisa fabulosa, mas por mulher eu sinto um respeito demasiado. Com mulher, parece que eu estou sempre transando com uma amiga.

Brega 1
Rock'n'roll mesmo era Camisa de Vênus, o Legião e o RPM. O RPM foi uma banda muito importante, independente do que o Paulo Ricardo esteja fazendo hoje. Eles abriram caminho para todo mundo.
O Camisa tinha aquela coisa beira de estrada, o RPM era brega sem querer ser e a gente era e é de propósito. Quando eu estou me sentindo bem, quando estou pleno espiritualmente, eu fico completamente retardado e idiota. "Pocilga" é importante, mas "E.T." também é importante.

Homofobia
Eu gostaria que o disco fosse para alguns países europeus. Estados Unidos também, é claro, mas os americanos são muito homofóbicos.
Não existe muito esse tipo de produto lá fora, como um disco de um Leonard Cohen gay. Sempre que eles fazem alguma coisa desse tipo, é como a k.d.lang, que faz uma coisa mais para cima.
Lá é muito complicado, tanto é que tem o mr. Michael Stipe, o mr. Henry Rollins, que são todos... Mas não podem abrir a boca, eles não são como os ingleses... Aí fica aquela coisa, o Stipe protege as baleias.

Kurt Cobain
É difícil explicar como eu achava que o Kurt Cobain era bom, aquelas letras... Mas ele foi embora. Se você realmente vai fundo, a coisa acaba.

Rock'n'roll
Não é possível fazer rock'n'roll com espírito adulto e maduro. Esse é o problema. O "Descobrimento do Brasil" me causou muita estranheza. Ele não é um disco adolescente, mas porque a gente é uma banda de rock'n'roll, o disco é extremamente adolescente. A não ser que você faça como o Lou Reed em "Magic and Loss" ou no "New York"...
Eu gostei muito do disco do Henry Rollins, mas aquilo é um homem de 34 anos falando o que um garoto de 16 pode muito bem falar.
Existe a saída, que é pop. A gente pode fazer o "Rumours" do Fleetwood Mac, eu posso fazer música popular.
O rock é muito adolescente, é sobre as dúvidas e a sexualidade adolescentes e sobre autopiedade –como eu sofro e ninguém me entende.

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