São Paulo, sábado, 25 de junho de 1994
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Wuppertal comemora 20 anos com Pina Bausch

MARINELLA GUATERINI
DO "CORRIERE DELLA SERA"

A cidade de Wuppertal, na Alemanha, dedicou seu festival este ano aos 20 anos de atividade da coreógrafa Pina Bausch em Wuppertal. Intitulado "De Isadora a Pina", o evento atravessa com desinvoltura todo o século 20.
É preciso lembrar que este século –o mais rico em reviravoltas radicais na arte de Terpsícore– pode ser resumido nos movimentos harmoniosos e soltos da norte-americana Isadora Duncan –diva inclusive na morte, que a pegou em sua Bugatti em alta velocidade–, e na dança dolente e maligna da alemã Pina Bausch: a antidiva simultaneamente turva e cristalina, capaz de esconder a própria imagem (desfrutada apenas por Fellini em "E la Nave Va") atrás de majestosos afrescos coreográficos.
O encontro das duas diferentes heroínas da dança livre possui todavia sua coerência. Poucos artistas do movimento, antes da desinibida e "naif" Duncan, souberam suscitar como ela era a fantasia do público no início do século. E nos últimos 20 anos, nenhum coreógrafo animou mais que Bausch uma forma de expressão geralmente fechada na torre de marfim das técnicas e dos códigos.
"Quero que a minha dança se conjugue aos movimentos das ondas e dos ventos, dos animais em liberdade e dos pássaros", escrevia a sonhadora Isadora. "Pretendo aproximar a dança da vida cotidiana, falar das pessoas, das coisas que me comovem", reprete obsessivamente Pina.
Mas hoje, a coreógrafa neo-expressionista, autora das danças mais concretas e realistas deste fim de século, parece decidida a reavaliar a utopia de sua lendária colega. Não poderia se explicar de outra forma seu surpreendente retorno ao ciclo grego e Gluckiano de 1974-1975, durante anos banidos do repertório "vivo" de seu Wuppertaler Tanztheater: "Iphigenie auf Tauris", apresentado em 91 na Ópera de Paris, volta nesta retrospectiva de 20 anos.
"Orpheus und Eurydike", refeito em 92, anuncia uma nova estréia para o teatro Carlo Felice, em Gênova (Itália), entre 7 e 10 de julho. Os dois espetáculos exortam uma descoberta da humanidade simples e arcana da dança.
As obras que tornaram famosa Pina Bausch durante os controvertidos 20 anos de sua permanência em Wuppertal estão longe da grandiosa pureza dos dramas de Gluck.
Em 1976, na ocasião da montagem de "Blaubart - O Castelo de Barba Azul", de Bartók, despedaçado e eletrizado pelo barulho das folhas secas dispostas no palco, a coreógrafa começava a experimentar um novo método de trabalho.
Em vez da tradicional imposição de movimentos aos bailarinos, são propostos questionários escritos e orais aos quais as respostas poderão ser corpóreas ou verbais.
Instigando a criatividade de sua equipe, Bausch acabou substituindo as partituras e os textos dramáticos com uma variada colagem de respostas a perguntas como: "Quando era pequeno, você tinha medo do escuro?", "O que você faz quando alguém lhe agrada?", "Qual o seu maior complexo em relação ao seu físico?".
O resultado desta subversiva prática coreográfica não é apenas a irrupção em cena de gritos, gestos sonoros, palavras e música –todas novidades relativas no contexto da dança, especialmente no grupo expressionista ao qual Bausch pertence, ela que é aluna de Kurt Jooss–, mas uma progressiva demolição do mito e da estética do bailarino.
Transformá-lo em "pessoa" foi uma revolução que, nos edulcorados ambientes do balé europeu, custou a Bausch acusações de vulgaridade e mau gosto germânico. Por parte da crítica norte-americana, amedrontada diante da veracidade do pranto de suas dançarinas, a acusação foi de sadismo em relação ao interior dos intérpretes.
Na Itália, a lacônica Bausch, desejosa de aproximar a dança da vida, obteve o reconhecimento oficial em 1984, graças a uma antologia na Bienal do Teatro alla Fenice, em Veneza. Mas no início dos anos 90, foi consagrada em toda parte justamente por saber cavar dolorosamente a psique dos dançarinos, restituindo-lhes uma gestualidade sem máscaras e um domínio total da cena.
Interpretações erradas de seu método de trabalho tentaram ligá-la ao mundo do teatro da improvisação.
Na realidade, Bausch sempre utilizou com sua exclusiva descrição o conteúdo expressivo dos bailarinos, por vezes atribuindo a um outro a vivência de um bailarino em particular, como se estivesse trabalhando com simples passos e não com fragmentos de vida.
A atitude, um pouco ditatorial, é típica de muitos coreógrafos. E a qualidade de Bausch se revelou no saber gestir a respiração cênica do universo de seus intérpretes apertando-os nos clichês dos vestidos de noite, que exaltam as virtudes e os defeitos da masculinidade e feminilidade colocados em vitrines. E ainda na criação dos triunfantes "Passos-Bausch", com os quais lançou os seus fiéis de encontro ao público, em uma manobra de aproximação, a "non-fiction" sempre mais instintiva e física.
A nova busca da coreógrafa de Wuppertal é a nova descoberta da dança pura e da música que a sustenta. Volta a trabalhar com Malou Airaudo e Dominique Mercy, dois personagens históricos da companhia.
A volta do classissismo de Isadora Duncan joga nova luz no fenômeno Bausch. Hoje, os intérpretes de Wuppertal são um pouco menos "pessoas" e um pouco mais bailarinos, segundo aquela vaga e indefinível natureza dupla do ser bailarino que assim consegue preservar seu mistério.

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