São Paulo, sábado, 25 de junho de 1994
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Graham Greene guardou sua vida nos livros

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Hoje é dia de Graham Greene. Nenhuma data redonda o devolve ao noticiário (ele só faria 90 anos daqui a quatro meses), nenhuma obra póstuma com sua assinatura acaba de chegar às livrarias, mas, como você já deve ter lido na coluna do Antonio Callado de hoje, a biblioteca dele está sendo leiloada em Londres –e o que dela se diz é de pôr água na boca de qualquer admirador do escritor. Para não falar dos que estudam sua obra e sua passagem por este mundo.
Seus livros eram todos anotados. Nas margens e nas páginas em branco. Com qualquer coisa: desde observações sobre o que neles havia até apontamentos para artigos, romances, peças e roteiros futuros ou em andamento. A alguns Greene dava notas, de alfa a gama. Em vários apontou erros factuais e gramaticais. Pinçou duas mancadas do segundo tipo no ensaio "Ernest Hemingway and His World", de Anthony Burgess.
Segundo Amanda Saunders, sobrinha de Greene, a biblioteca nos fala muito mais sobre o seu proprietário do que qualquer coisa já escrita a respeito do escritor. O que inclui, presumo, a alentada biografia de Norman Sherry, cujo primeiro volume (cobrindo a vida de Greene só até 1939) possui 783 páginas. Robert McCrum, que vistoriou a biblioteca para uma recente reportagem publicada pela "New Yorker", não discorda da aparente hipérbole cometida pela sobrinha. Também para ele, Greene deixou preciosas pistas sobre sua maneira de ser e pensar nas margens dos livros que leu.
Arrumados em ordem alfabética e por subcategorias (Espionagem, América Latina, Vietnã etc.), incluem os clássicos inevitáveis, os bambas da ficção edwardiana –H. Rider Haggard, Anthony Hope, John Buchan–, com os quais Greene praticamente aprendeu a ler, e as primeiras edições de Evelyn Waugh ("O melhor escritor vivo & o amigo mais leal e crítico", anotou na margem do livro de Abram Tertz que tinha nas mãos quando soube da morte de Waugh), Lawrence Durrell, Patricia Highsmith, Vladimir Nabokov, Stephen Spender, entre outros.
Numa primeira edição de "Another Time", de W. H. Auden, escreveu: "Não pergunto a uma pessoa ferida o que ela está sentindo. Eu me transformo nessa pessoa ferida... Agonias são como roupas para mim". Falava mais de si mesmo que do poeta. Idem nesta reflexão, aposta a uma antologia de Tchecov: "Talvez a vida sexual seja um teste: se conseguimos sobreviver a ela sendo caridosos com aqueles que amamos e aqueles que traímos, tudo bem. Mas ciúme, crueldade e desconfiança...aí, fracassamos. O pecado está no fracasso. Tanto faz ser a vítima ou o carrasco".
Nos 13 volumes onde estão contidos todos os contos de Tchecov o autor de "O Poder e a Gloria" deixou anotações e fragmentos de peças e romances (sobretudo de "Os Comediantes" e "O Fator Humano") capazes de abastecer mais de uma tese de doutorado. Em outro russo (mais exatamente na autobiografia de Maximo Gorki) guardou o itinerário de uma viagem até Pequim e as impressões de um "armagnac" e do ópio que experimentou num hotel oriental.
Greene quase sempre fazia do livro mero suporte para idéias que nada tinham a ver com o seu conteúdo, transformando-o numa espécie de diário indisciplinado. Estava lendo um livro de Celine, logo de quem!, quando visitou Cuba pela primeira vez. Ao menos é isso que se deduz de uma anotação sobre Fidel Castro em sua contracapa.
Apesar da admiração por Waugh, costumava reler com mais frequência Henry James e Ezra Pound. As cartas de Pound, aliás, foram a última coisa com lombada que seus velhos olhos azuis perlustraram. Especialista em James, acrescentou uma anedota sobre o autor de "Princesa Casamassima" na biografia escrita por Leon Edel, uma das muitas obras consumidas por Greene no restaurante Chez Felix, em Antibes, sul da França, sua morada a partir de 1966. Aboletava-se lá todas as noites, levando sempre um livro, onde transcrevia até diálogos de outros fregueses.
Maníaco por espiões e códigos secretos, vez por outra envolvia em mistério algum lembrete, acrescentando-lhe números indecifráveis. McCrum encontrou mensagens do gênero numa edição de "De Profundis", de Oscar Wilde. O que me fez lembrar do código secreto amoroso que Greene usava para se comunicar com sua primeira mulher, Vivien, e já devidamente decifrado. 143, por exemplo, significava "I love you" (eu te amo).

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