São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cidade têm quase 100% de indigência

ADELSON BARBOSA
DA AGÊNCIA FOLHA EM REMÍGIO (PB)

A miséria produziu no município de Remígio (132 km a nordeste de João Pessoa) a maior concentração de indigentes da Paraíba.
Os indigentes são aproximadamente 16,5 mil dos 18 mil habitantes de Remígio. Em segundo lugar no ranking da miséria no Estado aparece Camalaú (91,1% de indigentes).
O documento classifica como indigentes as pessoas com rendimento mensal entre zero e um salário mínimo.
Os demais 66% ganham até um salário mínimo. Os aposentados da Previdência recebem o mínimo. Os não-aposentados ganham entre um quarto e metade do mínimo.
Quatro dólares
Segundo a professora, os indigentes de Remígio passam fome e não conseguem comprar nem mesmo uma cesta básica para toda a família. Comem um dia e no outro não. A alimentação é à base de feijão e farinha de mandioca.
No universo dos miseráveis, só há comida quando se consegue trabalho para arrancar tocos no mato das fazendas espalhadas pelos 553 km quadrados de área do município.
Para homens, os fazendeiros pagam diárias que variam de CR$ 7.000 a CR$ 10.000 por serviços de vaqueiro e limpador de mato.
O trabalho de mulheres e crianças tem remuneração ainda menor. Elas ganham de CR$ 1.500 a CR$ 2.000 por semana para limpar mato e arrancar tocos.
As famílias são formadas geralmente por oito a dez pessoas. As casas onde moram são de taipa, com piso de barro e não têm sanitários. A água que consomem não é tratada.
Apesar de não aparentar miséria por causa das ruas calçadas, praças cuidadas e casas aparentemente em bom estado, a zona urbana abriga 10.000 pessoas que dependem do fraco comércio e dos baixos salários pagos pela prefeitura local.
Com exceção dos ocupantes de cargos de confiança do prefeito, ninguém ganha salário mínimo.
Os salários variam de CR$ 7.000 a CR$ 60 mil. O prefeito José Passos (PL), 47, diz não ter condições de pagar o salário mínimo.
Ele diz ganhar 1.618 URVs como prefeito. É dono do único hospital da cidade, do clube de diversão e da empresa de ônibus intermunicipal.
Remígio tem índice de mortalidade infantil equivalente ao do Estado da Paraíba, que é 40% maior que a média nacional.
Ruas calçadas
É fácil encontrar indigentes nas ruas de Remígio. Eles saem da zona rural e da periferia. Pedem esmolas ou vendem qualquer coisa para ganhar trocados e comprar algo para matar a fome.
José Maria da Silva, 29, junta latas de óleo de soja vazias no lixo para fazer pás de lixo.
Ele vende cada pá por CR$ 500. Quando vende todas, fatura CR$ 10.000. Com o dinheiro, compra comida e paga o aluguel do quarto onde mora.
Arnaldo Rufino da Silva, 35, tem dez filhos menores. É agricultor, mas não tem terra para plantar. Ganha CR$ 2.000 por dia arrancando tocos. Os filhos o ajudam.
Aos domingos, Rufino vende cafezinho na feira. Sua mulher, Antonia Ferreira da Silva, 44, compra biscoitos com o dinheiro do café.
Na feira do último dia 11, ele ganhou CR$ 5.000 com o cafezinho e comprou para os filhos dois quilos de feijão e três de farinha.
Escola
Seis dos dez filhos estão matriculados na alfabetização do grupo escolar do sítio onde moram, mas não vão todos os dias para a escola.
Frequentam as aulas por dois dias e nos três seguintes trabalham para ajudar o pai.
Um dos filhos de Silva, Cícero Amadeu Ferreira da Silva, 13, não sabe quantos anos tem. Disse que quer ser "doutor".
"Estou com vontade de estudar para ser doutor", disse Cícero, que só come bem quando vai à escola e encontra merenda.
Cícero disse que nunca ouviu falar no presidente da República, nem no governador do Estado. Dos jogadores da seleção brasileira, só conhece Bebeto.
Escravidão
Estudo de pesquisadores do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) aponta condições desumanas de trabalho entre trabalhadores dos canaviais do Estado.
Segundo o estudo, os canavieiros têm jornada de trabalho excessiva, que atinge até 14 horas por dia. Saem de casa às 4h e só retornam às 18h.
Muitos canavieiros passam duas semanas fora de casa, acampados em galpões que parecem mais "alojamentos de escravos", segundo a professora Gláucia Luna Ieno, do Departamento de Promoção da Saúde do Nesc (Nucleo de Estudos em Saúde Coletiva) da UFPB.
O estudo constatou ainda a exploração do trabalho de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos nos canaviais, o que é proibido pela Constituição Federal.
Segundo os pesquisadores, os canavieiros são transportados em caminhões sem nenhuma proteção e correm riscos de vida.
No percurso da viagem –do lugar onde moram até o trabalho– são expostos ao sol, ao vento forte e às chuvas.
A coordenadora do estudo, professora Emília de Rodat Moreira, não classifica a situação dos canavieiros paraibanos como escravidão.
Segundo ela, os trabalhadores não são forçados a trabalhar, têm direito de ir e vir e ganham salários.
"Eles vivem em condições desumanas. Muitos têm casos graves de deformação na pele, nos ossos e no tamanho por conta da exploração", afirmou.
Ela disse ter constatado que a carga horária excessiva se estende também às crianças, vítimas mais frágeis do trabalho nos canaviais.
Os pesquisadores encontraram galpões com 60 metros que abrigam por até 15 dias entre cem e 120 pessoas.
"Os canavieiros dormem em um espaço tão pequeno, que as redes batem umas nas outras. Quem não consegue espaço para as redes, dorme no chão ou sobre os sacos de adubo químico", afirmou a médica sanitarista Gláucia Ieno.
Ela acompanha os canavieiros desde 1989 no município de Caaporã (47 km ao sul de João Pessoa).
Ieno afirma que as condições de trabalho provocam reumatismos, bursites (inflamação na articulação dos ombros), lombalgias (dores na coluna lombar), escolioses (desvio da coluna), dores nas articulações dos joelhos e cotovelos e tendinites (inflação nos tendões).
Os canavieiros que aplicam herbicidas e adubos químicos apresentam intoxicações agudas que provocam vômito e desmaio nos locais de trabalho, alergia respiratória, queimaduras de pele, lesões nos dedos por esforço repetitivo e intoxicações crônicas.
As intoxicações resultam em tontura, mal-estar de estomago, tosse seca, gosto de herbicida na garganta e cheiro do produto na urina.
Gláucia Ieno diz ter constatado que os trabalhadores usam embalagens vazias de herbicidas para transportar de rios e poços a água que consomem durante o dia.

Texto Anterior: Candidatos apóiam uso do Exército contra crime
Próximo Texto: Canavieiro não contesta dados
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.