São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Derrida caça os fantasmas de Marx

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Jacques Derrida, o filósofo do desconstrutivismo e um dos pensadores mais conceituados da atualidade, lançou recentemente na França "Os Espectros de Marx". O livro contraria a idéia de que Marx está definitivamente enterrado sob os escombros do Muro de Berlim e afirma que é preciso negociar com o seu espectro, ou seja, reler Marx. Será publicado no Brasil em agosto pela editora Relume-Dumará.
Telefonei a Derrida pedindo uma entrevista. Afim de marcá-la, ele sugeriu que fosse encontrá-lo na Ecole des Hautes-Etudes en Sciences Sociales. Fui, me apresentei, e ele marcou o encontro para dali a dois meses, alegando que estava de partida para os Estados Unidos.
Na data combinada, compareci para fazer a entrevista, surpreendente do começo ao fim. De início, por ele querer ler o esboço das questões que eu levava numa folha de papel, em vez de deixar que eu as colocasse. Depois, de dizer repetidamente que era difícil dar conta delas, insistindo em que renunciássemos à entrevista. E, finalmente, por retomá-la quando eu já me dispunha a voltar noutro dia.
Derrida não deixou em momento algum de resistir à entrevista que ele havia concedido. Terá sido para que eu percebesse o quanto é difícil para alguém que trabalha seu pensamento livre das pressões do tempo submeter-se ao tempo limitado do dispositivo jornalístico? Para denunciar talvez o autoritarismo da mídia, ao qual ele já se referiu mais de uma vez?
Seja como for, através da sua resistência, o filósofo questionou a entrevista à medida em que a fazíamos. Por isso, além das suas respostas as questões específicas, segue o relato do que ocorreu antes e depois das mesmas.
Primeiramente, Derrida me pede para lhe dar as perguntas. Depois de ler com atenção, concentra-se e responde à pergunta incial, que diz respeito ao título do seu livro, "Expectros de Marx", e, em particular, à razão pela qual ele usa a palavra "espectro" no plural.

Derrida - O plural abre sobre a multiplicidade de dimensões do livro. Trata-se por um lado de Marx, enquanto expectro para a consciência política mundial de hoje, que vê no comunismo – por ela difundido com as sociedades socialistas que desmoronaram – algo morto e que deve ser evitado. Para esta consciência, é preciso se certificar de que Marx está e vai continuar enterrado.
Existe, portanto, uma relação ao espectro de Marx e do comunismo. Mas também existem, por outro lado, espectros de Marx, os que perseguiram o próprio Marx. Na segunda parte do livro, digo que Marx era perseguido por um exército de espectros, trato do problema da "fantasmalidade" em relação com o fetichismo, com a ideologia, etc.
O plural indica, dependendo da maneira como a gente articula o genitivo, Marx como um espectro, e, por outro lado, os espectros que existiam para ele. Só que a noção de espectralidade não diz respeito apenas ao fantasma, e sim a tudo que eu chamo de lógica espectral, aquilo que, na nossa experiência, não é nem inteligível, nem sensível, nem visível, nem invisível e que tanto diz respeito à linguagem quanto à telecomunicação.
Folha - O que o levou a falar de uma lógica espectral?
Derrida - O tema do espectro já está nos meus livros anteriores. O espectro é uma estrutura que resiste às oposições metafísicas. Não é nem inteligível, nem vivo e nem não-vivo. Portanto, tem uma afinidade com quase todos os conceitos que me interessaram no meu trabalho: a "graça", o "phármakon", o "suplemento", tudo que resista às oposições conceituais da filosofia clássica. A espectralidade foi o viés estratégico da descontrução. Tratava-se de encontrar uma categoria que resistisse às categorias filosóficas.
Há já muito tempo, eu me interesso pelo trabalho do luto na psicanálise e para além da psicanálise. Escrevi sobre o assunto em "Glas" e em certas introduções a obras de psicanálise. Quando a gente se interessa por esse trabalho, tem que se ocupar do retorno do fantasma.
Procurei mostrar, a partir de Freud e contra ele, que o trabalho de luto é interminável. Foi, portanto, a partir de uma reflexão sobre o luto que eu cheguei a privilegiar a espectralidade e, em "Espectros de Marx", a gente encontra muitos fios de pensamento já bem antigos.
Derrida lê a segunda questão, que diz respeito à razão pela qual ele se refere a Shakespeare em "Espectros de Marx". Lê e logo responde:
Derrida - Shakespeare é uma referência de Marx, que o cita sempre. Mas as obras que ele cita não são as que eu privilegio em "Espectros de Marx". Ele cita sobretudo "Timão de Atenas", "O Mercador de Veneza"... Ao que sei ele não fala de "Hamlet". Achei necessário considerar o interesse de Marx por Shakespeare, porém também fui a este por causa da lógica da espectralidade. Há muitos espectros na obra de Shakespeare, em Hamlet, em Macbeth...
Folha - O que o recurso a Shakespeare significou para o sr.?
Derrida - Difícil responder a isso numa entrevista...
Folha - Bem, então vamos passar à próxima pergunta (Digo isso me referindo à terceira questão, que está na folha de papel, em cima da mesa e na frente de Derrida)
Derrida - Não, não... há muito a dizer sobre o recurso a Shakespeare... Mas deste modo eu não consigo falar.
Folha - Hum...
Derrida – Me interessei, por exemplo, pelo que chamo de efeito de viseira no fantasma do rei, do pai de Hamlet. O efeito de viseira diz respeito ao fato de que o fantasma vê sem ser visto, por usar uma viseira. Tentei, a partir daí, pensar o que é uma situação em que a gente é olhado sem poder olhar, uma situação espectral.
Me interessei também pelo fato de que o tempo de "Hamlet" é difícil de se calcular porque o fantasma aparece primeiramente na peça, pela segunda vez. A coisa começa pela repetição. Por fim, há algo que Hamlet diz e que organiza "Espectros de Marx": "The time is out of joint", o tempo está disjunto. Trata-se do tema da disjunção, da não-contemporaneidade a si mesmo, é um tema maior nesse livro que se quer não contemporâneo.
Escrever um livro falando de Marx hoje pode parecer anacrônico e eu procuro justificar este anacronismo antravés da disjunção, do "out of joint". Mas diga, quanto tempo nós temos?
Folha - Em princípio uma hora, mas depende do senhor...
Derrida - Uma hora é muito. Veja (mostrando a agenda repleta), eu tenho um outro encontro marcado para daqui a pouco.
Folha - Bem, então nós fazemos o que for possível.
Derrida - Mas eu não tenho condições de dar entrevista, eu escrevo tão melhor do que falo...
Desligo o gravador para deixá-lo à vontade. Logo depois ele retoma a palavra.
Derrida - Mas você vai me mostrar o texto?
Folha - Claro, posso até escrever em francês primeiro, se o senhor fizer questão disso.
Derrida - Não, não precisa, pode ser em português.
Derrida passa a ler a questão seguinte. Nela pergunto se ele diria que o filósofo deve se ocupar do espectro como o psicanalista se ocupa do recalcado.
Derrida - Claro que o espectro é alguém que nos fascina e a gente tenta reprimir, recalcar. No entanto, não sei se a categoria psicanalística esgota o problema. Tento pensar a dimensão política de um tal recalque. Por outro lado, eu me coloco uma série de questões sobre a maneira como Freud trata o fantasma. Trata-se de levar em conta uma leitura do psicanalítica do espectral e também de colocar questões sobre as categorias psicanalíticas, que devem ser reelaboradas e politizadas. Você opõe, na sua pergunta, o filósofo e o psicanalista, mas o psicanalista também trata do espectro...
Folha - Claro, mas foi o sr. que organizou o seu pensamento a partir da figura do espectro.
Derrida - "Espectros de Marx" não é um livro filosófico simplesmente. Por várias razões. Primeiramente porque desconstrói uma série de axiomas filosóficos. A própria filosofia não foi capaz de pensar o espectro. É preciso pensá-lo contra a filosofia.
Por outro lado, queria protestar contra uma corrente atual que quer tratar Marx como um grande filósofo e estudá-lo na universidade. Trata-se de uma maneira de neutralizar Marx, de fazer dele um personagem da Academia Filosófica. Não é só uma leitura de filósofo que eu faço, é uma leitura que protesta contra uma certa desapropriação filosófica de Marx.
Digo a Derrida que ele já está respondendo à minha pergunta seguinte, a qual trata justamente de saber o que significa a volta ao espírito de Marx. Derrida lê a pergunta de novo na folha, que está na sua frente e responde:
Derrida - Insisto em dizer que não é um retorno a Marx, mas que se trata do retorno de Marx. Não se trata de um desses tantos retornos a mais, em que a gente vai redescobrir uma obra... Trata-se de levar em conta o fato de que Marx retorna e que a gente não pode resistir ao que este retorno nos dita, nos impõe. Por outro lado, esse retorno de é o retorno do espírito se não do espectro, de uma certa maneira de colocar questões críticas, sem necessariamente reabilitar as teorias de Marx.
É preciso distinguir o espírito da letra. Questionar com o espírito de Marx não quer dizer reaplicar dogmaticamente a doutrina de Marx voltar a uma ortodoxia marxista. Nunca fui e nem me tornei marxista. Marx, o pensamento marxista foi um dos poucos que fez da abertura crítica uma palavra de ordem.
Trabalhar com o espírito de Marx também significa não ficar no interior de uma dogmática marxista e tentar pensar o inédito do nosso tempo com um certo espírito, que eu também chamo de espírito de justiça e nos vem de Marx. O espírito diz respeito à espectralidade, porém também a uma incitação que não nos paralisa numa letra dogmática, num dogma literal numa doutrina.
Folha - Isso tem algo a ver com o estilo de Marx?
Derrida - Com o estilo, no sentido literário, não. Tem a ver com o modo de colocar as questões, uma certa vigilância em relação a certas maneiras que os homens têm na sociedade de esquecer, dissimular fetichizar.
Folha - Que proposições de Marx o sr. mantém e que outras recusa?
Derrida - Em nome do espírito de Marx eu me proponho, no livro, a desconstruir todas as proposições de Marx. Alguns marxistas dizem que não sobra nada de Marx. É bem possível que a ontologia de Marx, todas as suas teses filosóficas, o materialismo dialético, a maneira pela qual ele próprio tenta conjurar o fantasma requeiram a desconstrução. Não guardo um conteúdo de tese marxista. Não retenho nada desse ponto de vista. Enquanto ontologia, a filosofia de Marx me parece desconstrutível.
Folha - O que é da luta de classes e da dialética?
Derrida - Tenho uma relação complicada com a dialética. É muito difícil explicar isso numa entrevista, você sabe...
Folha - Trata-se de uma questão que interessa aos leitores...
Derrida - Eles que leiam o livro. Não consigo explicar isso numa entrevista.
Folha - Eu o entendo perfeitamente bem.
Digo isso e fico em silêncio . Derrida lê as perguntas e subitamente diz. "Não, eu não posso. Aliás eu não posso mais nada. Isso tudo é muito difícil, não me sinto capaz. Acho que nós devemos renunciar." Pela segunda vez eu desligo o gravador e sugiro uma pausa, um café. Derrida não diz nem sim nem não e eu volto a ligar o gravador, tomando inutilmente a iniciativa:
Folha - Numa das suas entrevistas, o senhor lembrou que posições de esquerda podem se aliar a posições de extrema direita. por causa das inquietações legítimas a respeito da política econömica dos Estados dominantes da Europa, uma certa esquerda se aliou a um anti-europeísmo extremo. Tem sentido ainda falar de esquerda e de direita.
Derrida - Não, eu não posso responder, é muito difícil.
Silêncio.
Derrida - Não posso e não é só porque esteja cansado, é porque é difícil. Queira me perdoar.
Recupero a folha de papel que está na frente dele, leio a questão seguinte e faço uma última tentativa.
Folha - A exploração da xenofobia pela classe política parece estar na base dos grandes conflitos da modernidade. Como litar contra ela?
Derrida - Sou contra, mas não tenho nada a dizer, não vou ficar aqui fazendo frases. Não devia ter prometido a entrevista porque não me sinto capaz.
(Silêncio)
Derrida - O que eu posso dizer a respeito disso está no livro.
Derrida pega novamente a folha onde estão as questões e eu agora protesto.
Folha - Não vejo porque o senhor queira ler. Seria melhor que eu lhe colocasse as questões.
Derrida - Quem redigiu isso?
Folha - Fui eu.
Derrida - É muito difícil.
Folha - Gostaria pelo menos que o sr. me desse uma resposta relativa à questão da pertinência dos conceitos de esquerda e direita...
Derrida - Não, não...

Continua na pág. 6-7

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