São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 1994
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O Diabo e o dinheiro

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não sou curtidor do Diabo, mas geralmente acredito mais nele do que em Deus. E das definições do Diabo, há duas que me impressionaram.
A primeira foi em jogo do Brasil com a Aústria, no Maracanã. Estava ao lado de Mário Fiho, um torcedor muito especial. De repente, entra em campo o massagista austríaco para atender um jogador machucado. Devia ser o único austríaco negro da história. Era calvo, reluzente, vestia um roupão vermelho, não corria: voava em direção ao jogador contundido.
Transtornado, Mário começou a gritar para o campo: "Diabo! Diabo! Diabo!" Depois de ter feito a denúncia genérica, voltou-se para mim, os olhos incadescentes, e informou baixinho: "É o diabo!"
A outra definição foi de Franco Zeffirelli. Ele montava "A Traviata" aqui no Municipal, contratado por Adolpho Bloch. Dava-lhe uma espécie de assistência e com ele convivi dois meses. No dia da estréia houve um problema banal, motivado pela mudança de governo (saía Geisel e entrava Figueiredo). Zeffirelli recusou-se a tomar conhecimento da mudança, Geisel ou Figueiredo no camarote tanto lhe fazia. Decidiu adiar a estréia.
No carro, levando-o para o hotel, ele me disse, depois de um longo silêncio: "O poder é o Diabo!"
Ofereço aos leitores as duas definições: a do massagista austríaco e a do diretor italiano. O massagista entrou em campo para recuperar um adversário circunstancial. O diretor italiano montava Verdi para si próprio: a mudança no cerimonial era uma ninharia, mas ele dava de barato que o poder deve poder tudo, daí ser o próprio Diabo que também parece tudo poder.
Não sei por que cismei de lembrar do Diabo e de suas definições. Temos um time em campo, na Copa do Mundo, e os massagistas continuam em sua função de mensageiros do Diabo. Temos também mudança de moeda –manifestação de poder. Os santos padres da antiguidade diziam que o dinheiro é o excremento do Demônio. Seria essa uma terceira via para tentar definir o Diabo.

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