São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 1994
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'Flintstones' vira pesadelo em carne e osso

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Oideal seria que o leitor pegasse na pilha de jornais velhos a edição da "Ilustrada" de sábado passado e lesse o que Inácio Araújo escreveu sobre "The Flinststones", filme de Brian Levant atualmente em cartaz. O artigo de Inácio Araújo é esplêndido; minha intenção é prosseguir seu raciocínio e por isso tenho de citá-lo extensamente.
"Em 1960", começa Araújo, "quando vieram ao mundo, os Flintstones eram bem diferentes: encravados entre a Idade da Pedra e a ficção científica, viviam num mundo despreocupado. A própria forma de desenho animado lhes dava uma leveza que coincidia com a época: a pré-história nada mais era do que uma antecipação do mundo de conforto do século 20..."
Inácio Araújo prossegue: "Quase tudo muda entre o desenho e `The Flintstones – O Filme'. As figuras dos desenhos tornam-se reais, claro, assim como os cenários. Mas, com isso, algo mais se transforma."
Eu poderia continuar citando o artigo até o fim. Mas quero elaborar um pouco a idéia que aparece no texto de Araújo, a de que a "leveza" dos quadrinhos se perdeu nessa transposição cinematográfica e de que tudo parece mais "carregado" no filme.
Com efeito, desde as primeiras cenas de "Flintstones", sentimos algo de pesadelo, de desagradável, de sombrio, o que os desenhos animados não tinham. Araújo compara o filme a "Brazil", de Terry Gillian –um dos pesadelos mais horríveis do cinema.
A sensação de pesadelo ocorre desde as cenas iniciais. No desenho animado, a pedreira em que Fred Flintstone trabalha é apenas um lugar vago, um cenário branco, engraçado e neutro. No filme, surge como um campo de trabalhos forçados, como uma cena de escravidão pré-histórica.
Indiana Jones e Cecil B. de Mille colocam sua marca sobre o filme. Massas escravizadas expõem o horror "real" da vida pré-histórica, em contraste com a leveza do desenho animado, para usar o termo de Inácio Araújo. Não há leveza no filme.
No desenho animado, Fred pode muito bem levar uma bola de boliche de pedra na cabeça; a impressão de dor é menos real. Mas, quando Fred leva uma bolada no filme, a coisa se torna mais assustadora. E menos engraçada.
Talvez estejamos às voltas com um problema de tradução. Explico. A graça do desenho dos Flintstones estava no fato de que tudo era uma tradução, intencionalmente ruim, do mundo moderno para a Idade da Pedra. Ou seja: no mundo moderno, temos telefones, televisões, carros. Mal traduzidos para a Idade da Pedra, esses objetos continuam a existir, mas numa materialidade primitiva. São televisões feitas de pedra, carros com eixos de madeira.
Numa palavra, a discrepância entre o mundo Flintstone e o mundo atual é apenas uma questão de matéria-prima. O plástico se traduz em pedra, a agulha da vitrola se traduz em bico de pássaro. E tudo fica comicamente "normal".
Com o filme, todavia, trata-se de fazer, digamos, uma "tradução da tradução". Traduz-se a "má tradução" do desenho animado em linguagem de cinema, em expressão corporal de atores vivos e objetos dotados de solidez.
Mesmo a fidelidade às aparências –John Goodman parece direitinho Fred Flintstone, Rick Moranis é a cara do Barney– se torna, assim, monstruosa. Os desastres se tornam mais reais.
E, em vez da habitual comédia conjugal, do tranquilo desenvolvimento dos mal-entendidos entre Fred e Wilma (um pouco ao sabor dos shows de Lucille Ball), temos um enredo, no filme, muito mais violento. Se não me falha a memória, os desenhos animados dos Flintstones não tinham vilões. Tinham apenas mal-entendidos. No filme, tem de haver vilão.
Adquirindo carne e osso, Fred se torna menos desculpável do que era nos desenhos animados. Encarnado num ator humano, sua densidade moral cresce. O Fred Flintstone dos desenhos era um sujeito falível, idiota, mas, afinal, era apenas Fred Flintstone.
Dotado de corpo humano, torna-se mais canalha, mais perigoso, mais inverossímil, mais condenável. Seus dilemas morais não se resolvem com a rapidez de um traço de lápis, sua afetividade não se resume num lance de animação; tudo ganha corpo, torna-se horrivelmente humano.
O filme perde, assim, não só a "leveza" plástica, mas também a inconsequência moral do desenho animado.
Uma conclusão de passagem: a moralidade é sempre uma questão de corpo. Sem corpo, ou seja, na condição de espectros, fantasmas, nós não teríamos moral. O pecado está no corpo. A justiça também. Pesa as coisas na balança. Ariel, puro espírito, pode ser desonesto, não será pecador. Calibã, puro corpo, pode ser puro, mas peca.
Dando corporalidade aos personagens do desenho animado, o filme dos Flintstones se torna, assim, mais pesado, mais insuportável. E mais sombrio, uma vez que só os corpos fazem sombra.
Outro contraste entre o desenho e o filme merece ser mencionado. No desenho, havia animais primitivos que aceitavam seu papel de artefato técnico. Assim, um pássaro era usado como bola de tênis, um tucano se submetia ao papel de agulha de vitrola, só suspirando de vez em quando.
No filme, o animal que é artefato técnico (a saber, o pássaro que faz as vezes de "ditafone" no escritório) assume papel importante na trama. Inocenta Fred das acusações que lhe foram impostas. É quase um personagem. Ao passo que, nos desenhos animados, os bichos pré-históricos não eram personagens, mas apenas figurantes, vinhetas humorísticas que reclamavam sob a violência da tradução tecnológica.
Volto ao tema da tradução. O filme dos Flintstones é monstruoso e horrível, em diversos aspectos. Seu tom de pesadelo não vem por acaso.
À medida que faz do mundo dos desenhos animados um "mundo real", em "três dimensões", onde corpos lutam, trabalham, esbravejam e amam, o que o filme consegue é traduzir leveza em pesadume.
Torna a "humanidade" dos Flintstones uma reação a uma ameaça presente na pré-história, a saber, a da desumanização. Os rivais de Fred no clube de boliche, por exemplo, são neandertalenses, seres primitivos. Bam-Bam é quase um bicho. Os limites entre o humano e o animal estão pouco explicitados no filme, ou melhor, fazem parte do entrecho.
Fred que subir na vida, segundo o filme. O fracasso, que atinge Barney, é quase uma recaída na animalidade. A ameaça de voltar a ser macaco está presente. O dilema básico da humanidade se torna mais dramático. Não se trata mais de ser rico e canalha, contra ser pobre e idiota, mas sim de ser rico e brutal, ou de ser pobre e ser macaco.
Há outro aspecto. A amizade entre Fred e Barney, tanto no filme quanto nos desenhos, é absoluta, firme, plena de desculpas e de amor. O casamento entre Fred e Wilma, contudo, é feito de suspeita, de mentira, de covardia e de rotina. O que se encena neste contraste é um tema muito atual.
Trata-se do conflito entre barbárie e civilização. Barbárie, até hoje, é a que se verifica entre os marmanjos que assistem bebendo cerveja à Copa do Mundo. Civilização é o que fazem os maridos, sonolentos e cordatos, que não torcem na Copa, abandonam a horda masculina e mergulham na sua doce e tediosa vida conjugal.
O filme nos traz um duplo ensinamento. O de não ser como Fred Flintstone, não ser tão animal e pré-histórico assim. Mas também o de não ser como Barney, tão amigo, tão devoto, tão moral. Trata-se, apenas, de ser tão humano quanto possível. O que implica pecar e arrepender-se, ousar e recuar, chorar como um louco e gritar "iabadabadu" sempre que possível. É um destino simples, primitivo, pré-histórico. Mas não é o pior dos destinos.

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