São Paulo, sexta-feira, 1 de julho de 1994
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'Daens' revisita vida operária no século 19

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Daens - Um Grito de Justiça
Produção: Bélgica, 1992, 132 min.
Direção: Stijn Coninx
Elenco: Jan Decleir, Gérard Desarthe, Antje de Boeck
Onde: Vitrine e Belas Artes/sala Aleijadinho

Não deixa de ser estranho que, após a queda do Muro de Berlim (e do comunismo na Europa), as questões sociais tenham voltado com tanta força ao cinema.
É possível que isso se deva às preocupações com a eficiência que, nos anos 80, levaram os países a uma espécie de beco sem saída: junto com a produtividade cresceu também o desemprego.
Era nisso, talvez, que pensava o diretor Stijn Coninx ao realizar "Daens - Um Grito de Justiça", filme belga que concorreu ao Oscar de melhor produção em língua estrangeira em 1993.
Para falar sobre um fenômeno presente, ele retroage ao fim do século 19, quando a burguesia belga, para concorrer com as tecelagens inglesas, introduz medidas como corte de pessoal e redução de salários.
O padre Pieter Daens (pronúncia aproximada: Danz), de quem o filme faz a biografia a partir do momento em que chega à cidade de Aalst, presencia as consequências desse tipo de política, que vão da morte de crianças por frio à miséria generalizada, passando por condições de trabalho aterradoras.
Daens –que tem um currículo de rebeldias– toma posição a favor dos pobres e contra os ricos. Este início é, de longe, o melhor que o filme tem a dar: a descrição da vida dos operários (no trabalho e em casa), as cenas que sugerem o perigo de mutilação ou morte representado pelas máquinas, a fome, os trajes, tudo contribui para criar um quadro não propriamente novo (parece saído de Charles Dickens), mas eficiente.
A isso se junta a composição notável que Jan Declair cria para Daens, como alguém que coloca a batina e o talento de tribuno a serviço dos pobres, sem se intimidar com as pressões que sofre.
Na segunda metade, a força do filme se perde em vários frontes: os enfrentamentos com a hierarquia católica, sua atividade parlamentar (ele se elege deputado), a multiplicação de incidentes (chicanas de vários tipos, acidentes de trabalho etc.) tendem a repetir, com menos vigor, o que foi mostrado na parte inicial.
A situação evolui –é o mínimo que se pode esperar de uma biografia–, mas os caráteres e as situações não. Com isso, os defeitos tornam-se mais evidentes: o principal deles é o academismo, a filmagem muito tradicional.
Não é de espantar que os adversários de Daens (os burgueses inflexíveis, a hierarquia conservadora da Igreja) percam densidade, tornem-se aos poucos vilões convencionais, que sugam o sangue dos operários por prazer.
É possível que isso corresponda a uma parte da verdade. Mas é a parte que menos nos ajuda a compreender a natureza das coisas e, mesmo, transformá-la. Nesse sentido, "Daens" se afirma como um filme de mensagem, simpático, sem dúvida, e também visível. Mas esse é também seu limite.

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