São Paulo, sexta-feira, 1 de julho de 1994
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Trevisan apequena grandes obsessões

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dalton Trevisan é um escritor muito bom de ler e muito difícil de comentar. Seu novo livro –"Ah, É?", ed. Record– reúne, em menos de 150 páginas, 187 "ministórias", como ele as chama (às vezes, só uma frase, ou diálogos curtíssimos; no máximo uns três parágrafos).
Quem já conhece alguma coisa de Dalton Trevisan não vai se surpreender com este livro. Ao contrário –e daí as dificuldades para comentar a sua obra–, o contista é sempre tão igual a si mesmo, e, de certo modo, expõe-se sempre com tal integridade, que não parece haver nada a acrescentar ou a explicar num comentário crítico.
A mesma coisa ocorre, por exemplo, com a poesia de João Cabral. A coerência de sua obra, a clareza que ele tem quanto às próprias intenções, ou seja, a ausência de distância entre o que ele diz e o que queria dizer, entre o "programa" da obra e a obra em si, tudo isso leva o crítico a repetir sempre o que já se sabe: o rigor de João Cabral, o intelectualismo, a secura mineral, a recusa às efusões líricas.
Também ficamos perigosamente próximos do clichê quando tratamos de Dalton Trevisan. Temos de falar em guerra conjugal (mas este já é o título de um livro seu); em violência e taras na classe média baixa de Curitiba; em narração esquelética; em elipses de linguagem, morbidez a seco, crueldade.
E nas famosas obsessões de Dalton Trevisan, todas, não por acaso, no diminutivo: o centinho de ouro, a correntinha no tornozelo, o muquinho no braço, ou o peitinho da moça virgem, o guaraná no canudinho, o velhinho nas últimas.
Como os contos deste livro são brevíssimos, não resisto a citar alguns. O de número 62, por exemplo:
"Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.
– Ele se enfeitava para a morte e não sabia."
Ou o de número 57.
"No guardamento da velha:
– Deu no que a Santinha queria. Isso que ela gostava. Casa cheia. Velório com garçom."
Mais um, o 77.
"Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama;
– João. Fale comigo, João.
Geme lá no fundo, abre o olhinho vazio:
– Bruuxa... diaaaba...
– Ai que alívio. Graças a Deus."
O uso do diminutivo é constante, impossível de evitar. Alguém apara "o bigodinho", a defunta é "Santinha", o moribundo "abre o olhinho vazio". Isso, em três exemplos escolhidos ao acaso.
A esse "apequenamento" das coisas, somam-se outras estratégias de redução. Em primeiro lugar, claro, a dimensão do próprio conto: a história se resume a poucas linhas. Há, também, a economia da sintaxe. Verbos se omitem, numa verdadeira violência narrativa. Exemplo (conto 31):
"O jantar para os dois casais amigos. Na parede uma das mulheres nuas de Modigliani. Tanta festa, muito rico. Até que um dos maridos:
– Essa moça do quadro. Ela sorri para você?"
A história continua. Mas, na ambientação, nenhum verbo. Seria normal, por exemplo, que a frase fosse: "Até que um dos maridos disse:". Mas só lemos: "Até que um dos maridos:".
Nos contos de Trevisan, tudo tem de ser curto, esquemático, truncado. Por quê? Imagino que, antes de tudo, o que se opera é uma espécie de deslocamento da violência. Crimes, assassinatos, estupros têm de irromper na história com tudo o que tenham de súbito, de inexplicável, de fútil.
Com efeito, o fato hediondo, a notícia de jornal, a tara, a cretinice, de certo modo afastam qualquer "literatura". Flaubert era um escritor que, como ninguém, viu o contraste entre a forma, a beleza do estilo, e a estupidez intransitiva dos fatos; entre a matéria e a linguagem. Oscilou entre as duas coisas: seja na procura de uma linguagem "material", por assim dizer, fundada na solidez marmórea do estilo, seja no fascínio pelo fato bruto, pelo lugar-comum, pela frase feita, pela burrice.
"Fascínio" é também uma palavra-chave para entendermos Dalton Trevisan. Seu erotismo é a de quem se deixa fascinar por um pequeno detalhe, ao mesmo tempo horrível e excitante –o leve estrabismo, a correntinha de ouro no tornozelo, por exemplo. Misto de desejo e de desprezo, o amor se move, na melhor das hipóteses, pelo fetichismo; quando assume uma versão trágica, passa da implicância ao assassinato.
O crítico Roland Barthes, num ensaio sobre Eisenstein, falava do "obtuso" de algumas cenas de filme. Aquilo que não contribui para o significado geral, mas que é cretinamente visível –um birote na viúva que chora sua desgraça, um chapéu enterrado na cabeça de uma mulher. Em outro artigo, sobre fotografia, Barthes falava no "punctum" –uma insignificância qualquer na foto, que nos atrai a atenção e resiste a todo comentário.
Dalton Trevisan é obcecado, fascinado, por esse "obtuso", por esse "punctum" –o dentinho de ouro. Mas, em seus contos, coisas como dentinho de ouro ou bigodinho a ser aparado não são "insignificantes" assim. Remetem, claramente, a uma condição social. São sinais de que o personagem é de baixa classe média.
Não se trata, assim, apenas de uma crônica realista do cotidiano em Curitiba.
É como se as misérias do cotidiano se cristalizassem num objeto, num fetiche, num sinal. Dotados daquilo que caracteriza o cotidiano, ou seja, a repetição, a insistência, esses objetos têm forçosamente de ser vencidos: seja pela posse sexual, nas histórias de amor, seja pela violência, nos desastres e crimes de Curitiba.
Duas últimas observações. Nelson Rodrigues era um obsessivo, um mórbido e um escritor da baixa classe média. Mas nele os personagens tinham mais densidade psicológica; podiam entregar-se a ações inexplicáveis, mas isto sempre caberia creditar à psicopatologia, à loucura. Em Dalton Trevisan, não há "sujeitos psicológicos". Todos se movem como figuras, dirigidos por uma lógica abstrata, sem subjetividade, entregues a uma loucura que não é mais individual.
Gil Gomes, por sua vez, traça os mesmos desastres e misérias que Trevisan. Mas sua estratégia é oposta. Repete, repete as mesmas frases, não só para fazer-se inteligível ao seu público, mas também para dar concretude, espessura dramática ao fato estúpido que tem a contar.
Trevisan desdramatiza o drama, distancia-se do horrível ao fixá-lo em poucas linhas. Assepsia sádica, frieza crítica, moralismo perverso, mas ainda assim inconformado –qualidade esta, a do inconformismo, que desconfio não haver em Nelson Rodrigues, muito menos em Gil Gomes.

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