São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Raí pede a Parreira licença para atacar

ALBERTO HELENA JR.; JOÃO MÁXIMO; MAURICIO STYCER
ENVIADOS ESPECIAIS A LOS GATOS

Ele é o camisa 10 e o capitão do time, dois símbolos que timbram o craque e o líder.
O craque está sendo contestado há algum tempo. E o líder não transparece em nenhuma expressão no rosto de pedra de Raí, e menos ainda em suas palavras contidas, arrancadas, uma a uma, num diálogo onde prevalece a paciência.
Gentil, cordato, amistoso mesmo, Raí vai desfiando suas idéias sem que se saiba o quanto delas ele está escondendo.
Quando o craque de 29 anos é chamado a intervir, instala-se uma dúvida ainda maior: como um jogador que já chegou a ser considerado há tão pouco tempo um dos mais completos atacantes do mundo, pode hoje em dia, em plena disputa da Copa do Mundo, ser um dos maiores alvos da crítica?
Raí começou jogando pelo Botafogo de Ribeirão Preto, quando seu ilustre irmão, Sócrates, se despedia do futebol.
A sombra do irmão perseguiu-o nos primeiros passos, que o levaram a uma breve estada na Ponte Preta, de Campinas, depois de volta a Ribeirão e, por fim, ao Morumbi.
No São Paulo, depois de um início vacilante, se consagrou, chegando a ser a estrela do time bicampeão do mundo.
Foi-se para o Paris Saint-German, e aí iniciou-se o calvário, que parece não ter fim.
Na Copa, Raí deu sinais de recuperação no jogo de estréia, contra a Rússia. Jogou bem no primeiro tempo contra Camarões, para, no segundo, despencar. Contra a Suécia, esteve apagadíssimo, como de resto toda a equipe.
Mas não é um Raí torturado em dúvidas que os repórteres da Folha encontraram na tarde de sexta-feira, logo após o treinamento no campo da universidade de Santa Clara (Califórnia).
Ele parece tranquilo, seguro de que não foi tão mal contra a Suécia, e mais: que agora, depois de uma conversa que teve com Zinho e Parreira, as coisas vão ser muito diferentes.
A partir do jogo contra os EUA, ele e Zinho terão mais liberdade de movimentação. Raí assegura que irá se meter área adentro, em busca da sua porção artilheiro que em algum ponto se despregou, sumiu.
Tão despreocupado parece estar que fez durante a entrevista um roteiro de cinema, teatro e música, revelou sua alegria por ter a mulher por perto, sua admiração pelo futebol da Nigéria e da Argentina, seus planos de encerrar a carreira lá pelos 35 anos, quem sabe, como líbero, e ir estudar –publicidade, talvez.
Por fim, Raí arrisca um palpite para o jogo com os EUA: 2 a 0 para o Brasil, claro. E, quem sabe, com um gol de Romário e outro dele, Raí, o camisa 10 e capitão da seleção brasileira na Copa do Mundo.

Folha –Antes da Copa, você dizia que estava bem e que tudo iria dar certo. Você acha que deu certo?
Raí –Ainda estamos no meio do caminho. Continuo me sentindo bem. Fiz um bom primeiro jogo, um segundo também... Tivemos, toda a equipe, dificuldades no terceiro... Mas ainda temos quatro jogos pela frente e temos tudo para continuar bem.
Folha –Mas o meio-de-campo continua sendo muito criticado. O que impede você e Zinho de desenvolverem um futebol melhor?
Raí –É um setor bastante congestionado em qualquer jogo nosso. Mas a gente está conversando bastante para ver as movimentações, as trocas de posições que podemos fazer para melhorar, para achar os espaços.
Folha –Zinho reclamou que está muito preso ao esquema tático e que isso está prejudicando o futebol dele. O Parreira disse hoje (sexta-feira) que os jogadores estão liberados para criar e para fazer o que quiserem.
Raí –Já conversei com Zinho. Já conversamos com o Parreira...
Folha –O que está mais difícil de fazer?
Raí –Eu acho que a gente pode, e deve, ter mais liberdade para fazer essa troca de funções no meio-de-campo para confundir a marcação. Mas, para isso, é preciso ter uma boa sincronia.
Folha –Você é um jogador que já ganhou vários títulos, foi campeão mundial, campeão paulista, campeão francês. Você está sentindo, para usar uma expressão que vocês gostam muito, que esse "grupo" é ganhador?
Raí –Confio muito. A gente não pode prometer nada, mas confio. Porque é um grupo maduro, que sabe o que quer, que já teve experiências em outras Copas do Mundo. É um grupo que sabe que pode arriscar mais numa partida, dependendo das circunstâncias, mas que sempre vai jogar com a cabeça no objetivo final, que é superar as fases até chegar à final.
Folha –Você é irmão de um jogador, Sócrates, que se dizia pertencer a uma "geração perdedora". Você concorda?
Raí –Não. Zico e Júnior, por exemplo, foram campeões mundiais interclubes. É verdade que não foram campeões mundiais na Copa. Mas isso ocorre há 24 anos. Não foram só eles. Conosco vai acontecer o mesmo. Se chegarmos à final e perdermos também vamos ser chamados de "geração perdedora".
Folha –Isso te preocupa?
Raí –É evidente que ganhar a Copa do Mundo vai contar no meu currículo. Quero ganhar a Copa com todas as minhas forças. Mas já ganhei vários títulos e nunca vou me considerar um perdedor. Sou um vitorioso. Independente do resultado da Copa.
Folha –Você está tenso?
Raí –Nada em excesso. Mas estou com a cabeça, corpo e alma aqui. A gente conversa muito sobre os nossos futuros adversários. À noite, também, discutimos as partidas. Mas também temos nossos momentos de descontração.
Folha –Você é um dos jogadores que mais ri nos treinamentos. Você está alheio a essa pressão em torno da seleção? Você está mais tranquilo?
Raí –Estou conseguindo manter a concentração, mas sem excesso de tensão.
Folha –Telê já disse que na seleção não há jogadas armadas para você, como havia no São Paulo. Você concorda? Você sente isso, que no São Paulo havia jogadas preparadas pelo time para você e que hoje, na seleção, você é que tem que criar as jogadas para os outros?
Raí –São situações totalmente diferentes. Joguei seis anos no São Paulo. Trabalhei três anos com o Telê e já conhecia de cor e salteado o que os outros jogadores faziam. O tempo de treinamento aqui é bem menor.
Folha –Você pensa em voltar para a França depois da Copa?
Raí –Ganhei meu primeiro título lá. Quero continuar. É um desafio: voltar e continuar a fazer sucesso lá.
Folha –Você acha que a imprensa francesa foi injusta, criticando você tanto na temporada passada?
Raí –Era esperado. O Paris Saint-Germain passou anos em terceiro e quarto lugar e não havia nenhuma cobrança. A partir do momento que passou a ser a melhor equipe, a cobrança cresceu demais. Eles queriam futebol bonito, futebol arte. Fomos campeões com dez pontos de vantagem sobre o segundo colocado e o treinador, que acabou de sair do time, era a pessoa mais criticada do futebol francês.
Folha –Mas você também foi muito criticado.
Raí –Quando eles querem atacar alguma coisa, é claro, o estrangeiro é sempre a primeira vítima. Em qualquer lugar do mundo. Ele vem com uma responsabilidade muito maior.
Folha –Está se falando, mais uma vez, que esta Copa é a luta do futebol técnico, artístico, contra o futebol competitivo, sólido, de marcação. Você é um adepto do futebol jogado com estilo. Você vê esse conflito aqui?
Raí –Não acho que exista uma relação assim entre futebol bonito mas perdedor e futebol feio e ganhador. Também pode existir futebol bonito e ganhador. Mas vi isso em algumas partidas. A técnica hoje tem muito menos importância do que no passado.
No jogo entre Colômbia e Romênia, por exemplo, a Colômbia era um time muito mais técnico e a Romênia acabou ganhando, jogando só na defesa, dando chutão e buscando contra-ataque. A eliminação da Colômbia mostrou que você precisa saber dosar também para não se expor demais só porque o seu time é mais técnico.
Folha –Você acha que o fracasso da Colômbia foi ruim para o futebol-arte?
Raí –Acho que não. Eles mostraram outros defeitos, abusando de certo tipo de jogo... Mas acho que outros times técnicos podem ter sucesso nessa Copa.
Folha –Passa pela tua cabeça que, por um acidente, o Brasil possa perder dos Estados Unidos?
Raí –Não, não passa. A gente não pensa nisso. O que sei é que não vai ser um jogo fácil como muitos pensam.
Folha –Holanda ou Irlanda? Qual dos dois você prefere enfrentar nas quartas-de-final?
Raí –Não tenho preferência. A Irlanda é uma equipe mais fechada, que gosta de jogo aéreo, e a Holanda sai um pouco mais para o jogo, mas é mais perigosa pelo chão.
Folha –Qual o time que te impressionou nesta Copa?
Raí –Vi bons momentos da Nigéria, que não conhecia muito bem, e a Argentina.
Folha –Você tem medo de enfrentar a Argentina?
Raí –Apesar da rivalidade, não tenho receio maior.
Folha –Quem se parece mais com o São Paulo bicampeão do mundo, o Brasil ou a Argentina?
Raí –Só vi um jogo da Argentina. Não dá para comparar.
Folha –Os EUA vão jogar muito fechados. O Parreira promete fazer uma mudança, colocando o Mazinho. Você acha que isso vai dar um pouco mais de toque de bola, um pouco mais inteligência ao meio-de-campo?
Raí –Acho que ele é uma boa opção. O Mazinho está numa boa fase. Mas o Dunga, quando o Mauro Silva joga, é que faz essa função, se solta um pouco mais e também tem feito boas partidas. É apenas mais uma opção.
Folha –Você não acha que, contra essas seleções que jogam fechadas, o Brasil não deveria ter uma alternativa a mais de ataque. Além de você, um jogador como o Muller ou o Viola?
Raí –Seria uma opção para mudar o sistema tático. É uma questão de saber se vale a pena ou não.
Folha –Você acha que vale a pena?
Raí –O time fica um pouco mais exposto. É uma opção.
Folha –Você acha que as críticas à seleção foram exageradas depois do empate contra a Suécia?
Raí –Essa reação já era um pouco esperada por nós.
Folha –Por que a seleção está jogando tão presa? Tão dependente de um jogador só, o Romário?
Raí –Eu acho que a seleção pode se soltar mais. Não acho que seja o caso de dizer que não tem nada de bom. Nós não perdemos a Copa. Mas dá para ter mais opções no ataque. Eu mesmo vou querer chegar mais na frente, tentar mais jogadas de gol contra os Estados Unidos.
Folha –O que é ser capitão da seleção brasileira? Isso tem alguma importância ou você é apenas o jogador boa-pinta que vai levantar a taça ao final da Copa?
Raí –Eu sou o representante dos jogadores em campo. Só isso. Não tem nada demais.
Folha –Você dá a impressão de que se desliga quando está em campo. Não está nem ligando se estão vaiando ou gritando de fora.
Raí –O ideal é isso. Mas nem sempre consigo.
Folha –O que você tem feito além de treinar? Você está lendo alguma coisa?
Raí –Tem dias que consigo me concentrar bem, outros dias não. Estou lendo "Dossiê Pelicano", um bom livro. Já virou filme, né?
Folha –Você gosta de cinema?
Raí –Adoro. É o que mais gosto em termos de cultura.
Folha –Qual o seu filme preferido?
Raí –Aquele de época, com a Glenn Close, "Ligações Perigosas".
Folha –E música? Não vai dizer que você gosta de música caipira, que nem o Sócrates?
Raí –Gosto de música popular brasileira. A música me ajuda muito. Quando você ouve os poetas que o Brasil tem na MPB, eles te mostram que a vida é muito mais do que isso que a gente está vivendo aqui. Isso me ajuda muito. Gosto de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan. Eles me fazem viajar.
Folha –Sua mulher está aqui na Califórnia, embora a CBF tenha recomendado aos jogadores que não trouxessem os seus familiares.
Raí –Isso é mais importante para ela do que para mim. Ela merecia curtir isso. Falei a ela que viesse como uma turista comum. Não quero preocupações. Se tiver problemas, que se vire. Eu casei muito cedo. Ela me acompanha desde os juniores do Botafogo (de Ribeirão Preto). Não vai ser numa Copa do Mundo que ela não vai curtir junto comigo. Pode ser a única Copa.
Folha –Por quê?
Raí –Não estou pensando nisso.
Folha –Você pensa em jogar até que idade?
Raí –Até os 35. Posso acabar jogando de líbero. Veja o Matthaeus (ex-meio-campo e atual líbero da seleção alemã).
Folha –Do ponto de vista financeiro, você poderia parar de jogar hoje?
Raí –Ainda não.
Folha –O que você pensa em fazer quando parar?
Raí –Quero fazer muitas coisas. Preciso de algo que me dê uma estabilidade financeira, mas também gostaria de estudar, ainda não decidi o quê. Gosto de história, a publicidade também me atrai.
Folha –O que foi que você viu o Sócrates fazer que tenha te servido como exemplo de algo que você não deveria jamais fazer na sua carreira?
Raí –Uma coisa que ele comenta muito foi a experiência dele no exterior. Ele diz que lá havia muitas coisas com as quais ele não concordava e ele, que estava chegando, quis mudar tudo. Hoje, ele não faria isso do mesmo jeito.
É importante dar a sua opinião, mas é preciso esperar a hora certa. Você não pode brigar com uma coisa que faz parte da cultura de um país.
Folha –Quanto vai ser Brasil e Estados Unidos?
Raí –Meu palpite é 2 a 0.

Texto Anterior: Amanhã! Tomorrow! USA e ABUSA, Brasil!
Próximo Texto: QUEM É RAÍ
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.