São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Os moedeiros falsos

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Afinal é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seu próprio interesse..."
André Gide
"É importante para um 'technopol' vencer a próxima eleição para continuar a implementar sua agenda e não para manter-se no cargo. Vencer uma eleição abandonando suas posições é para ele uma vitória de Pirro."
John Williamson

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Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado "think tank" de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, "In Search of a Manual for Technopols" (Em Busca de um Manual de 'Tecnopolíticos'), num seminário internacional cujo tema foi: "The Political Economy of Policy Reform" (A Política Econômica da Reforma Política).
Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina "as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um 'technopol' a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso" o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de "Washington Consensus" (Consenso de Washington).
Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 80), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de "technopols": economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu "mainstream" (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do "Consensus", como é ou foi o caso, por exemplo, de Aspe e Salinas no México, de Cavallo na Argentina, de Yegor Gaidar na Rússia, de Lee Teng-hui em Taiwan, Manmohan Singh na Índia, ou mesmo Turgut Ozal na Turquia e, a despeito de tudo, Zélia e Kandir no Brasil.
Um programa ou estratégia sequencial em três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de "reformas estruturais": liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico.
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Foi ainda nos anos 80 que o reiterado insucesso das políticas monetaristas de estabilização introduziu nos debates econômicos a importância crucial para o sucesso no combate antiinflacionário do "fator credibilidade", e teve como consequência a canonização de uma heterodoxia, a da re-regulação do câmbio ou "dolarização".
Logo à frente, já nos anos 90, as novas avaliações pessimistas, tanto do FMI como do Bird, puseram em destaque a importância decisiva do "fator poder político" no sucesso ou fracasso de seu programa econômico. Esta nova preocupação dos intelectuais e gestores do Consenso de Washington é que explica não só a realização do Seminário de Bergsten e Williamson, como a presença nele de dois cientistas políticos, Joan Nelson e Stephan Haggard, responsáveis por um dos mais abrangentes estudos comparativos já feitos sobre este assunto nos Estados Unidos.
No seu documento introdutório, Williamson resume as perguntas e hipóteses centrais relativas às dificuldades próprias de cada uma das etapas do plano e sobre as respostas alternativas encontradas pelos diferentes países. Porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo.
Listam-se ali, como condições mais favoráveis, quando o programa consegue ser ampliado depois de alguma grande catástrofe (guerra ou hiperinflação) capaz de minar toda e qualquer resistência; quando os "technopols" conseguem defrontar-se com uma oposição desacreditada ou desorganizada; quando, além disto, eles disponham de uma liderança forte capaz de "insularizá-los" com relação às demandas sociais.
Condições que não dispensaram, entretanto, em todas as situações conhecidas, a formação prévia de uma coalizão de poder suficientemente forte para aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir "credibilidade" aos atores que realmente interessam, neste caso: os "analistas de risco" das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais "globalizados".
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Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de "technopols", mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc, para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento.
Neste sentido, os seus "technopols", como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo.
Desde este seu ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.
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Por isto, não surpreende a confusão popular frente à candidatura de FHC e suas relações sinergéticas com o Plano Real. O que surpreende, sim, é a confusão ainda maior que reina entre os intelectuais que criticam ou justificam emocional ou ideologicamente as suas atuais preferências políticas.
Erro que não cometeria o FHC professor, lógico e realista, se não estivesse impedido de recorrer a si mesmo e ao que ainda melhor explica suas preferências políticas atuais: os seus próprios ensaios sobre o empresariado industrial e a natureza associada e dependente do capitalismo brasileiro, datados dos anos 60.
Eles permitem entender e acompanhar de forma perfeitamente racional o caminho lógico que levou FHC à sua posição atual no xadrez político-ideológico brasileiro. Mas é verdade que, ao mesmo tempo, contêm o libelo mais duro, veemente e essencial contra a sua própria opção. Em termos muito sintéticos:
a) O trabalho acadêmico de FHC pode ser todo ele definido como uma busca incansável dos "nexos científicos" entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações "histórico-estruturais" e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões de poder.
b) Com esta perspectiva, FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, de maneira implacável, já em 1963, que "a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía" e que, por isto, "havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental."
Constatação que lhe permitiu redescobrir muito cedo no empresariado brasileiro uma condição universal do capitalismo: a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização.
c) Esta descoberta foi responsável direta pelo seu passo seguinte e mais original: para FHC, se a condição periférica do capitalismo se definia pela ausência de moeda conversível e capacidade endógena de progresso tecnológico, a sua "condição dependente" se definia pela forma peculiar de associação econômica e política do empresariado nacional com os capitais internacionais e o Estado.
Tripé de sustentação econômica da fase de "internacionalização do mercado interno" (em que as empresas multinacionais assumiram a liderança em quase todos os setores de ponta, responsabilizando-se por cerca de 40% do produto industrial) e de um tipo de "industrialização associada", tão viável quanto inevitável do ponto de vista da "burguesia industrial brasileira."
d) Durante os anos 70, o trabalho intelectual de FHC consistiu em demonstrar que esta "situação estrutural" não impedia o crescimento econômico nem o associava necessariamente a um só modelo social e político. Concluindo, logo antes de entrar para a vida política, que o caráter predatório, excludente e autoritário do capitalismo brasileiro era a marca própria que a coalizão conservadora de poder imprimira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.
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Não é difícil estender e atualizar a análise de FHC à nova "situação estrutural", definida por uma internacionalização mais avançada ou globalizada do capitalismo, associada ao aumento de nossa "sensibilidade" interna às mudanças da economia mundial. Sobretudo porque a nova realidade ultrapassa, mas não invalida, o que de essencial FHC escreveu nos anos 60 e 70. E a sua inteligência lhe impede repetir bobagens e lhe permite saber que o que interessa para o Brasil no novo contexto globalizado não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim nem tampouco com o esgotamento do modelo de substituição de importações que já ocorrera nos anos 60/70...
Nessa atualização, basta ter claro que a globalização não é um processo completamente apolítico, envolvendo desde os anos 80 pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas. Por isto, os ajustes nacionais tampouco são puramente econômicos. Os Estados nacionais têm que optar e decidir como se conectam à nova redefinição das coalizões interna e externa de poder.
No nosso caso, o velho tripé econômico e sua aliança com as elites políticas regionais entrou em crise e precisa ser refeito. Dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional "financeirizou-se"; o empresariado local, que já se "ajustou" a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto "sócio menor associado", e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do "Washington Consensus"; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor.
FHC sabe como ninguém que mudar ou refazer esta articulação econômica e aliança política é o problema central que hoje está posto no cenário brasileiro. E, frente a esse desafio, tomou sua primeira e decisiva decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como um fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais.
Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos "nexos científicos" para se propor como "condottiere" da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira.
(continua)

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