São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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O ideólogo da terceira via

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

"A ladainha brizolista das perdas internacionais nunca foi tão atual, justamente agora que saiu de moda". Quem fala é o cientista político Roberto Mangabeira Unger, há 18 anos professor titular de direito da Universidade de Harvard, nos EUA, e membro vitalício da Academia Americana de Artes e Ciências.
Correndo por fora no debate sobre a sucessão presidencial, Mangabeira continua sendo o maior ideólogo do candidato Leonel Brizola e o consultor preferido do presidenciável do PDT.
Na entrevista que segue, feita por fax depois de dois contatos telefônicos e alguma relutância, Mangabeira não poupa os candidatos do PT e do PSDB e diz que Brizola é o presidenciável "menos suscetível de conformar-se ao Consenso de Washington", que ele vê representado pela figura de Fernando Henrique Cardoso.
Sobre Lula, Mangabeira diz, invertendo a análise corrente sobre os efeitos de uma vitória do petista, que o risco maior de seu governo seria o de conformar-se ao neoliberalismo e "não acontecer nada de mais para o Brasil".
Brizola, apesar de ser considerado à esquerda e à direita um representante do velho populismo que a história atropelou, ainda é para Mangabeira "o único candidato que representa a ponte entre a memória histórica que suprimimos e a visão programática que ainda nos falta e também o único capaz de compreender, ainda que intuitivamente, a relação entre a marginalização interna do povão e a marginalização externa do país".

Folha - Qual é o significado histórico da eleição presidencial?
Roberto Mangabeira Unger - O Brasil responderá a três indagações, todas ligadas. Primeiro, o país dirá se vai ou não seguir a fórmula do Consenso de Washington, de estabilização mais ou menos ou menos ortodoxa (no figurino da dolarização moderada e do congelamento salarial efetivo); de liberalização seletiva (sem ameaça aos oligopólios e aos nepotismos do nosso grande capital privado); de privatização camarada (para negar ao Estado os instrumentos de uma política rebelde de desenvolvimento nacional e para compensar os empresários pelo aumento da concorrência estrangeira); e de políticas sociais compensatórias (para moderar a miséria sem prejudicar os aquinhoados). Aceitaremos ou não este projeto neoliberal, protagonizado hoje por FHC?
Em segundo lugar, a eleição ajudará a moldar o presidencialismo que o povo –contra o consenso das elites– salvou no plebiscito. Será um presidencialismo parlamentarizado, domesticado e guiado por uma classe política criptoconservadora? Ou conseguiremos aproveitar o potencial plebiscitário e desestabilizador que o eleitorado intuiu no presidencialismo? Saberemos mais adiante reformar este presidencialismo para dotá-lo dos instrumentos necessários à resolução de impasses entre os poderes?
Em terceiro lugar, a eleição começará a responder a uma pergunta espiritual, ainda mais profunda e persistente do que as outras duas: se forjaremos no Brasil apenas uma variante do materialismo exuberante ou se seremos mais ambiciosos na construção de uma forma própria de viver.
Folha - O sr., que esteve com Lula recentemente em Harvard, parece não acreditar na capacidade do PT de implementar reformas profundas no país.
Mangabeira Unger - Minha preocupação é que o PT tem a vontade de possuir um projeto transformador, mas não tem este projeto. O PT reúne muitos dos melhores militantes políticos do país e contribuiu imensamente para tornar mais séria a política brasileira. Mas vejo na vida daquele partido duas contradições que se reforçam. Primeiro, a contradição entre a intenção transformadora e as propostas surpreendentemente conservadoras. Prevalecem no discurso do PT a negociação corporativista para o primeiro Brasil (entendimento negociado entre os grandes interesses organizados) e o assistencialismo estilo Betinho para o segundo Brasil.
Quando provocados a darem exemplos de mudança estrutural, descambam os próceres do PT para o micro gandhiano, tal como ajuda à indústria artesanal do carnaúba no Norte e Nordeste. Em segundo lugar, o PT sofre a contradição entre sua base eleitoral crescente no Brasil desorganizado e sua obsessão congênita com as fórmulas e as práticas do Brasil arrumado. Tais contradições explicam a sedução que sobre os chefes do PT exercem idéias claramente antipopulares no nosso contexto como são o pluralismo sindical e o parlamentarismo.
O vazio programático cria ambiente propício às concessões táticas desordenadas e favorece a assimilação ao ideário neoliberal. Os petistas pressentem isto. Estão com medo de perder e com medo de ganhar. De fato, o grande risco da vitória deles é o risco de não acontecer nada de mais no Brasil.
Folha - Um governo do PT poderia ser neoliberal?
Mangabeira Unger - É grande o perigo de desperdiçarmos, por falta de visão programática, a oportunidade transformadora que possa resultar da eleição.
Folha - Quais seriam, então, as linhas de uma alternativa ao Consenso de Washington?
Mangabeira Unger - Primeiro, a estabilização às custas dos que enriqueceram com o regime da moeda indexada, a intervenção nos bancos para destruir o sistema das contas indexadas e a elevação da poupança pública e do investimento público sobre a base da tributação eficaz, transparente e progressiva. Precisamos tributar progressivamente tanto a hierarquia dos padrões de vida (por um imposto progressivo e direto sobre a diferença entre a renda e a poupança de cada um) quanto o acúmulo do poder econômico (por um tributo sobre o patrimônio).
Segundo, a reconstrução do aparato burocrático do Estado com a formação de quadros profissionais de elite, otimamente compensados. Sem este aparato, nada se realiza.
Terceiro, a criação de uma série de parcerias práticas entre o governo, suas empresas públicas e bancos públicos e as empresas privadas para juntos desenvolverem setores de vanguarda dentro da nossa economia. A tarefa é forjar os instrumentos institucionais para executar, de forma mais descentralizada, participativa e experimentalista, a parceria entre governos e produtores que os "tigres asiáticos" adotaram com tanto êxito.
Quarto, a orientação de parte destas vanguardas para produzirem os materiais e as máquinas necessários ao avanço de nossa vasta retaguarda econômica, constituída por pequenas e médias empresas, urbanas e rurais, com acesso restrito ao capital, à tecnologia e aos mercados. Aí descobriremos a importância de fomentar redes de "concorrência cooperativa" entre grupos de pequenas e médias empresas que cooperem e compitam ao mesmo tempo.
Quinto, a imposição do capitalismo aos capitalistas na economia privada do grande capital, pela legislação antitruste vigorosa, pelos custos impostos ao fechamento das empresas de família, pelo redirecionamento dos favores das empresas públicas e dos bancos públicos aos pequenos empreendimentos e pela fragmentação e descentralização do sistema bancário.
Sexto, o investimento maciço e prioritário em educação pública, em escolas, professores e condições práticas de apoio à criança, acompanhado por uma revolução no conteúdo da educação brasileira pra livrá-la do decoreba e dirigi-la à conquista de capacidades.
Sétimo, a democratização da comunicação, a começar pela multiplicação de formas de acesso e de propriedade na televisão.
Folha - A reorganização da economia mundial, com as novas formas de reconcentração do capital nos países centrais e a imposição de regras universais do comércio, não inviabiliza a execução do que o sr. propõe?
Mangabeira Unger - Nem do ponto de vista jurídico nem do ponto de vista econômico somos obrigados a seguir o caminho do Consenso de Washington e a reconsolidar o condomínio oligárquico do poder. A cada proibição de ajuda do governo aos produtores se contrapõe, nos conflitos sobre a nova ordem econômica mundial, uma polêmica sobre o "dumping social" –a concorrência montada sobre o aviltamento do trabalho. A cada prática que transporta as partes mais atrasadas da produção para as economias semiperiféricas se opõe uma nova oportunidade, criada pela própria evolução da tecnologia, para ligar a vanguarda industrial à retaguarda industrial dentro do país, fazendo com que aquela produza para as necessidades desta. Falta clarividência empresarial, política e diplomática para aproveitar as oportunidades escondidas sob o disfarce do que parece ser um esquema monolítico.
Folha - O candidato Leonel Brizola, visto à esquerda e à direita como um populista ultrapassado, representaria para o sr. a real alternativa ao Consenso de Washington, mesmo depois de tentar aliar-se a liberais como o prefeito Paulo Maluf?
Mangabeira Unger - Brizola parece-me o candidato menos suscetível de conformar-se ao Consenso de Washington e o mais comprometido, política e sobretudo intimamente, com o programa que esbocei. É o único candidato com densidade histórica e intransigência temperamental: o único que representa uma ponte entre a memória histórica que suprimimos e a visão programática que ainda nos falta e o único que compreende com clareza, ainda que intuitivamente, a relação entre a marginalização interna do povão e a marginalização externa do país. Sua vida é inteiriçamente contestadora.
É possível que muitos se tenham cansado de Brizola enquanto que outros se hajam impressionado com a campanha da mídia contra ele. Se for assim, deveriam repensar. Como todas as pessoas, tem defeitos. Não tem dado ênfase bastante à definição do modelo econômico alternativo nem à sua condição prática mais importante, a organização popular. Muitas vezes avalia mal as pessoas. E vê a história e o presente do país de uma perspectiva que me parece unidimensional: a perspectiva do trabalhismo que surgiu na esteira de Getúlio. Mas não lhe censuraria a busca de aliados necessários para chegar ao segundo turno: buscá-los, sem transigir, é um dever.
Folha - Fernando Henrique Cardoso, ao aliar-se com o PFL, traiu o que sempre disse ou está sendo coerente com suas idéias?
Mangabeira Unger - Vejo a trajetória e a candidatura de Fernando Henrique Cardoso sob o ângulo de algumas experiências brasileiras paradigmáticas.
Uma destas experiências é a tragédia da idéia social-democrática no Brasil. Por que a política social compensatória é tão popular no discurso da política brasileira, a ponto de se haver tornado a língua franca dos nossos políticos?
É porque não se pode executar; não há conserto social que funcione sem o enfrentamento da divisão interna do país em dois mundos. Em vez de políticas compensatórias precisamos de políticas antidualistas. O discurso da social-democracia ou do social-liberalismo no Brasil acabou numa tragicomédia: as oligarquias mais obscurantistas e opressoras das regiões mais atrasadas do país como sustentáculos do candidato supostamente social-democrata.
Outra experiência paradigmática é o destino dos intelectuais que se formaram no crepúsculo do marxismo. Perderam a esperança na política transformadora, mas ficaram com o rescaldo do determinismo econômico e sociológico. Nele encontraram pretexto para aceitarem como inevitável a nova ordem dominante no Brasil para renunciarem a um projeto nacional.
Ainda outra experiência paradigmática é a ascensão na nossa política de homens que traíram o Brasil porque o aceitaram, deixando-se cegar pelo hedonismo, pelo conformismo e pela desesperança. Fernando Henrique Cardoso não é o único, mas um caso típico.
Folha - O Plano Real tem alguma chance de êxito?
Mangabeira Unger - O Plano Real pode, como todos os planos, funcionar a curto prazo. Se pode funcionar a longo prazo depende essencialmente do grau de prostração do povo brasileiro. Há dois níveis de análise. Do ponto de vista técnico das finanças públicas, o Plano Real representa uma tentativa de aproximar-nos da ortodoxia financeira sem pagar à ortodoxia todo o tributo que ela exija. O problema é que se procura acabar com o negócio da moeda indexada sem prejudicar os que enriquecerem com esse negócio.
Primeiro, não há folga nas contas públicas. A situação aparentemente favorável do orçamento é calculada num momento em que a poupança pública e o investimento público se encontram num patamar insustentavelmente baixo.
Segundo, o mecanismo da dolarização, ainda que mais flexível do que em outros países, não deixará de imprensar nossa economia entre duas forças: o empobrecimento do país pela sobrevalorização cambial e o empobrecimento do povão pela necessidade da Fazenda de continuar gerando reservas cambiais contra a maré do câmbio atrasado. A ladainha brizolista das perdas internacionais nunca foi tão descritiva dos fatos, justamente agora que saiu de moda.

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