São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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O real e o fantástico

Por mais céticos e calejados que estejam os brasileiros, a chegada da nova moeda os envolve num gigantesco rito de passagem em que cada um afinal quer mais uma vez colocar sua esperança à prova. Danem-se os argumentos dos economistas, os maquiavelismos eleitorais, as incoveniências práticas. No fundo da alma, cada um de nós gostaria de encontrar um oráculo que pudesse simplesmente responder sem rodeios nem abstrações: vai dar certo.
A moeda ficou batizada como "real", mas não há como escapar a essa atmosfera meio de maravilhamento, mais propriamente surreal ou fantástica que cerca um país-continente que se dispõe a trocar todo o seu dinheiro. A pesquisa Datafolha realizada já no primeiro dia do real mostra que essa disposição a acreditar ainda existe na sociedade, e com força.
Falou-se muito no real, jornais e revistas publicaram fotos da nova moeda. Entretanto, há uma indisfarçável ansiedade, uma excitação tão mágica quanto infantil quando finalmente se tem a chance de ver e tocar a nova moeda que chega.
Mas foi também típico do realismo fantástico, gênero literário latino-americano que teve seu boom faz alguns anos, mesclar no próprio ato de maravilhamento uma realidade crua, doentia e miserável. Esta é a negra situação que se fará cada vez mais gritante, contra o pano de fundo das novas notas coloridas.
É fato por exemplo que nas últimas duas semanas houve um movimento quase generalizado de remarcações, de alimentos a transportes urbanos, passando pelos artigos de higiene e limpeza. Em setores do comércio houve quem agisse como se estivesse numa véspera de congelamento geral de preços. Enfim, não há como ignorar que o fruto dessa precipitação será uma pobreza ainda mais real.
A perspectiva de juros reais extremamente elevados talvez obrigue os remarcadores a reduzirem preços para liquidar estoques. Talvez. Mas será a mesma alta de juros que desestimulará o empresário a contratar mais para produzir mais.
A transição ao real, através da URV, foi uma tentativa de evitar violências sobre os contratos e, ao mesmo tempo, promover uma acomodação de interesses e uma estabilização de expectativas. Foi uma transição razoavelmente bem-sucedida do ponto de vista da revisão de contratos –embora muitos se anunciem dispostos a denunciar expurgos e lutar por compensações financeiras na Justiça.
Mas do ponto de vista das expectativas e dos interesses, a vida útil da URV foi talvez insuficiente para acalmar os ânimos. Virá com clareza, talvez com mais força, o chamado conflito distributivo.
A correção monetária teve sempre um efeito, senão amortecedor, ao menos lubrificante das tensões. A sua suspensão por um período que para os padrões brasileiros é longo (um ano) fará com que cada agente, trabalhador ou empresário, cada setor ou cada região veja sua participação no bolo da riqueza nacional como algo que será a partir de agora ainda mais difícil de mudar.
Caberá ao governo, reconhecida a percepção de uma terrível distribuição da renda no país, continuar a perseguir a estabilização, mas sem perder de vista as reformas estruturais que venham a criar justiça social –sem a qual, aliás, a própria estabilização não se sustenta.
A nova moeda, em si mesma, nada altera. O acesso ao consumo, à riqueza nacional e aos bens públicos, entretanto, depende de decisões políticas que até agora foram adiadas. As reformas do sistema de impostos, da Previdência, do pacto federativo e do Estado dependem, cada uma, de decisões políticas com impacto distributivo direto e, consequentemente, com ganhadores e também perdedores.
Todo indivíduo busca amparos quando a existência torna-se insuportável. Mas a fantasia e o desejo podem tornar-se igualmente grotescos quando sua realização é adiada eternamente. A criação de uma nova moeda por certo realimenta a esperança. Entretanto, talvez nunca os riscos de uma nova frustração tenham sido tão evidentes.

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