São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Desagrado a gregos e troianos

OTÁVIO VELHO

Uma parte significativa da opinião pública dita intelectualizada não considera haver na atual disputa presidencial outra opção a não ser entre Lula e Fernando Henrique. E dentro desse âmbito Lula deve contar hoje com maioria. Todavia, essa maioria parece ser constituída por sua vez por uma minoria de petistas históricos e uma maioria que opta por Lula por não ver condições de acompanhar a opção pela aliança com o PFL.
De qualquer forma, entre os intelectuais quaisquer opções políticas tendem a ser assumidas com alto grau de emoção e processos de identificação que outros setores da população costumam reservar para outras atividades, como por exemplo o futebol, a política tendendo a ser vista "de fora".
Essa atitude popular em geral é vista pelos intelectuais como sinal de despolitização, mas talvez fosse interessante admitir a hipótese de que a politização dos intelectuais, por sua vez, pode estar baseada num mito juvenil que supõe que de fato somos parte da política como atores plenos, mito esse que tornaria nossos raciocínios muito mais "alienados" que os dos demais cidadãos, mais pragmáticos talvez.
Quais seriam as consequências se de fato fizéssemos o exercício de pensar a política "de fora"? A opção por Lula poderia estar baseada em outros argumentos. Ou, então, talvez pudéssemos admitir votar em Fernando Henrique sem clima de torcida de futebol, mesmo isso desagradando aos dois lados. É essa segunda possibilidade que gostaria de examinar.
Na Bíblia já se fala do fariseu que orava agradecendo por não ser ladrão, injusto ou adúltero como o resto dos homens. E isso ficou para nós fixado na expressão farisaísmo. Ora, tudo indica que a eleição de Lula não virá nem de longe acompanhada de votação semelhante para os demais candidatos da sua coligação.
Em 1989, quando muitos de nós votamos em Lula desde o primeiro turno, acreditávamos que um governo popular consagrado nas urnas teria uma autoridade política e moral que superaria todos os obstáculos colocados pela estrutura dominante.
Hoje, depois desses anos de experiência com a Constituição de 88 e diante da perspectiva de um Congresso igualmente recém-saído das eleições não se deveria ter mais essa ilusão.
As alianças serão indispensáveis e nenhum governo poderá pura e simplesmente realizar um programa partidário. Mesmo porque não serão alianças com indivíduos, grupos e "setores" o suficiente. Alianças mesmo é que estarão em jogo, e não com forças imediatamente afins. Desagradável? Sim, e por isso é que a maioria de nós está na hora de reconhecer as limitações da sua vocação para a política, tratar de olhá-la "de fora" e cuidar da vida ao invés de querer politizá-la.
Nessas circunstâncias, o que diferencia as duas alternativas é antes de mais nada a opção por fazer essas alianças antes ou depois das eleições. E não há dúvida que explicitá-las antes é muito mais transparente. Mesmo porque revela uma disposição e uma preparação para aproveitar ao máximo o tempo de mandato, que é de se temer não seja o caso do outro lado.
Mas a seguir vem a questão substantiva do resultado prático que se pode esperar dessas alianças. Aí –fora do terreno do partidarismo estrito– o cidadão comum precisa admitir que não há garantias, mas que certamente a aposta na idéia de que do lado de Fernando Henrique tudo se resume aos interesses da classe dominante não deixa de correr o risco de se tornar uma profecia que se auto-realiza, já que a política se faz em torno de apoios concretos. Todavia, mesmo aí isso não parece provável.
Os pronunciamentos dos mais lúcidos representantes da direita indicam que mesmo na aparente ausência de alternativas esse não é o único cenário com que operam: mandato de quatro anos sem direito a reeleição (na ausência de um fortalecimento significativo do PT a fabricação de um novo Lula parece altamente improvável) reduzem o alcance de um eventual governo dessa coligação a um episódio perfeitamente controlável que apesar de eventuais experiências pontuais interessantes (afinal, até o governo Itamar as tem tido) terminará sem continuidade e com o fantasma do PT exorcizado, senão liquidado. Desse ponto de vista, portanto, as coisas também não são tão claras.
O cidadão que se considera fora da política não é obrigado a se render à lógica dos candidatos e de seus partidos. Não estará acrescentando nada ao que já está ocorrendo. Pode encarar a política como um mal necessário e não se identificando plenamente com nenhum realizar as combinações pragmáticas que julgar convenientes.
Acreditando na importância do pluralismo e reconhecendo as limitações para decisões absolutas (até, quem sabe, apostando no momento atual no valor das misturas de modelos cuja combinação exata não se pode precisar de antemão) parece até possível, conforme o caso, ajudar a fortalecer o PT em eleições proporcionais e regionais –reconhecendo e apoiando a importância da sua preservação– e ao mesmo tempo, uma vez que a esperança messiânica no poder regenerador da política seja deslocado, optar nas eleições presidenciais na direção da candidatura Fernando Henrique. Por que não?

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