São Paulo, quarta-feira, 6 de julho de 1994
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O imposto que não pode ser único

JOSÉ RUI GONÇALVES ROSA

Muito embora a revisão constitucional tenha ficado para um futuro incerto, o debate político sobre o capítulo tributário continuará, sem dúvida, no rol das preocupações daqueles que buscam o aperfeiçoamento das nossas instituições.
Na prática, atualmente existem duas correntes de pensamento com a atenção voltada para aprimorar o sistema tributário do nosso país.
Numa delas, com a qual eu me identifico, estão os defensores de um sistema fundamentado em tributos declaratórios. Noutra, estão os propositores de um sistema de tributação onde predominariam as incidências não-declaratórias, mas que, eventualmente, admitiriam alguma imposição declaratória, mais pela necessidade de completar o caixa (e.g. projeto do deputado Luiz Roberto Pontes –PMDB-RS).
Um caso particular e extremo do sistema não-declaratório seria o Imposto Único sobre Transações (IUT), idealizado pelo professor Marcos Cintra, que coexistiria com apenas dois impostos declaratórios de estrita natureza extrafiscal (impostos sobre comércio exterior e territorial rural).
Neste artigo, pretendo questionar alguns pontos a respeito da capacidade do IUT, tal como proposto, de financiar integralmente o Estado. Essas colocações são agora mais oportunas, tendo em conta a disponibilidade recente dos números efetivos da arrecadação do Imposto sobre Movimentação Financeira (IPMF), que permite estimar com mais precisão a receita potencial que teria o IUT (anteriormente as estimativas do IUT eram baseadas em amostras precárias colhidas junto a parcela do sistema bancário).
Não serão, assim, discutidas as possíveis vantagens ou desvantagens operacionais do IUT, como, de um lado, a extrema simplicidade e sonegação quase impossível e, de outro, problemas como a regressividade, o incentivo à verticalização produtiva, o desestímulo às exportações, o obstáculo à promoção da integração comercial, a oposição das unidades federadas pela perda de competências tributárias, além de, no dia em que tivermos uma inflação européia (não igual a da Rússia), o incentivo em afugentar os agentes econômicos das operações bancárias.
Em artigo publicado em 10/07/93, nesta Folha, intitulado "A arrecadação do Imposto Único", o professor Marcos Cintra afirmava que "a intenção do IUT é garantir a mesma arrecadação atual, ou seja, cerca de US$ 80 bilhões a US$ 86 bilhões anuais. Esse é o volume médio de recursos arrecadados nos últimos anos pelos três níveis de governo e pela previdência".
Diante dessa colocação duas dúvidas emergem. A primeira é se os valores de Carga Tributária Bruta (CTB) seriam realmente esses. A segunda é, se com as alíquotas básicas sugeridas pelo professor Cintra, de 1% para cada crédito e 1% para cada débito, conseguiria o IUT gerar toda a CTB hoje arrecada no país.
Na minha opinião, não. Porém, defensores desse tributo têm argumentado positivamente e, às vezes, chegado a afirmar que uma das principais razões pela qual o IUT não seria implantado é porque feriria os interesses dos sonegadores e daqueles que sobrevivem com a atual cultura tributária (fiscais, advogados tributaristas, contadores etc.).
Vamos por partes. A CTB em 1994 deverá atingir algo próximo a 29% do PIB. Tomando-se o PIB da ordem de US$ 450 bilhões, contido no Orçamento revisado para 1994, teríamos uma arrecadação de US$ 130 bilhões neste exercício, carga essa julgada suficiente para zerar o déficit operacional do setor público, condição considerada necessária para o alcance da estabilização da economia brasileira. Para 1993 estima-se que a CTB tenha alcançado 27% do PIB.
Não deve ser esquecido, porém, que para anos anteriores a 1993, quando a carga tributária (legal, é claro!) situou-se ao redor da marca histórica de 25% do PIB, o governo, para poder financiar integralmente seus gastos, "lançou" cerca de 3% do PIB de impostos inflacionário por ano (Afonso J.R.R. "A Carga Tributária no Brasil: Estimativas para 1992", boletim IPEA nº 20, jan/93, e Cysne, R.P. –"Quanto se ganha com a inflação", Folha de S. Paulo de 08/09/93).
Assim, a primeira questão que se apresenta é que, mesmo sem levar em conta o imposto inflacionário, as necessidades financeiras do governo ficaram no intervalo de US$ 100 bilhões a US$ 119 bilhões nos últimos três anos e não em US$ 85 bilhões como colocado pelo professor Cintra.
Posteriormente, em artigo de 10/02/94, também nesta Folha, sob o título "Os vícios e virtudes do IPMF", o professor Cintra afirmou que "(...) No período em que foi cobrado (três semanas em setembro ...), o IPMF gerou cerca de US$ 180 milhões por semana. Uma arrecadação anual de quase US$ 8 bilhões". Aqui começa a segunda dúvida.
Ocorre que esses números estão longe de ser corretos. Segundo a Coordenação de Arrecadação da Secretaria da Receita Federal (Cosar/SRF), o montante arrecadado naquelas três semanas somou US$ 256 milhões, correspondendo a uma média de apenas US$ 85 milhões/semana.
E mais: durante o primeiro quadrimestre de 1994, segundo o mesmo órgão, a receita média mensal do IPMF somou US$ 346 milhões, mantendo praticamente a mesma marca de setembro de 1993). Isto posto, a arrecadação anual potencial estaria na metade dos US$ 8 bilhões informados pelo professor Cintra! Mas vamos adiante.
Ainda nesse último artigo, comparando o potencial arrecadatório do IPMF ao do IUT, o professor Cintra dizia que "o IPMF foi bem menos universal do que o Imposto Único pretende ser. Ficaram de fora do IPMF um grande número de empresas que obtiveram liminares, os setores constitucionalmente imunes... No total, um vazamento estimado de 8% a 10% da arrecadação possível".
Acontece que mesmo com essas ressalvas, o IUT, como proposto, não atingiria a arrecadação desejada. Desse modo, ajustando-se a receita efetiva do IPMF, informada pelo Cosar/SRF, à base do IUT, como preconiza o professor Cintra, teríamos uma arrecadação anual de cerca de US$ 4,5 bilhões, derivada de uma alíquota de 0,25% apenas sobre os débitos.
Para uma alíquota de 2% a arrecadação anual do IUT alcançaria, desse modo, somente US$ 36 bilhões, montante muito abaixo dos US$ 130 bilhões necessários para financiar o Estado de forma não-inflacionária.
Mesmo considerando, como argumenta o professor Cintra, uma economia de custos de controle, lançamento etc., pela extinção de outros tributos, da ordem de US$ 10 bilhões (o que parece exagerado), e uma arrecadação adicional pelo saque/depósito em moeda corrente de US$ 10 bilhões, cada uma das alíquotas básicas do IUT teria que se situar em torno de 2,5% ou, de outro modo, ter-se-ia que introduzir algum(s) outro(s) com objetivo fiscal no sistema, o que tornaria o IUT único, mas não muito.
Com alíquotas desse nível fica mais claro perceber que os problemas antes apontados do IUT se tornariam magnificados, principalmente no que se refere ao estímulo à desintermediação bancária (vide a Argentina), inviabilizando o alcance da arrecadação esperada e fazendo ressurgir o déficit orçamentário.
Em conclusão, a proposta seria inconsistente com a estabilização da economia, pois, com o nível elevado requerido para as suas alíquotas não haveria salvaguarda suficientemente forte para assegurar a arrecadação de equilíbrio.
Como corolário, depreende-se que o nosso sistema tributário não poderia ser muito diferente daqueles existentes nos países avançados. Porém, para qualitativamente se igualar a esses necessita de dois reparos: um, de ordem estrutural, que o torne funcional ao desenvolvimento econômico, principalmente através da simplificação de suas bases de incidência; outro, de natureza administrativa e judicial, que possibilite punir com efetividade os sonegadores.

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