São Paulo, quarta-feira, 6 de julho de 1994
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Real exige conversão religiosa e monetária

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Algumas observações sobre o chamado Plano FHC. Não sei, aliás, se a esta altura o nome Plano FHC ainda é adequado. Fala-se mais no real, ou no Plano Real. A presença do ministro Rubens Ricupero fixou-se melhor nos meios de comunicação, fazendo de Fernando Henrique um pai distante.
Um clima de otimismo, como sempre ocorre a cada plano, está no ar.
O cruzado suscitava nos cidadãos da "Nova República" (eram os tempos da "Nova República") a alegria de serem patriotas em proveito próprio. Os fiscais de Sarney, tabela na mão, fechavam supermercados, e seu entusiasmo cívico recompensava-se pela compra de eletrodomésticos a bom preço.
Foi um período de militância com custos baixos, de heroísmo com barriga cheia. O poder civil e a democratização do país faziam milagres. Funaro era uma espécie de pastor evangélico, e todos fomos crentes. Fomos todos sérios, fomos todos fiscais, todos nós gastávamos dinheiro. O Estado éramos nós.
Com o Plano Collor, o Estado era "elle". O confisco deixou os cidadãos atônitos, a ponto de não se perceberem enganados pelas promessas prévias de campanha. O que se exigia não era a militância popular, mas uma espécie de consentimento fervoroso. As contas bloqueadas criaram um misto de entusiasmo, de terror e maravilha.
A chegada do real envolve outras sensações. Há, como de hábito, muita esperança; alegria mesmo. Não a euforia intransigente do cruzado, não o contentamento perplexo de quem sobreviveu a um assalto e assiste ao súbito restabelecimento da ordem, como no caso do Plano Collor.
O real nos traz uma alegria infantil: moedinhas, contas de dividir e de multiplicar. Transporta-nos, por assim dizer, a um outro país. O Estado, agora, é um outro lugar, onde entramos como turistas.
Trata-se, com efeito, da experiência do viajante: notas diferentes, cálculos, etiquetas de preços que mostram estranhas quantias: R$ 11,19, R$ 0,46.
O escritor americano John Updike abre sua recente coletânea de artigos ("Odd Jobs", Knopf, 1991) contando uma viagem que fez à Finlândia. O texto é um prodígio de descontração, de estilo e de inteligência.
Updike fala de suas primeiras compras. "Nossa atitude ao gastar moeda estrangeira passa por dois estágios: inicialmente, relutamos em nos desfazer do dinheiro, uma vez que seu valor incerto o faz incalculavelmente precioso; depois, começamos a gastar livremente, como se fosse dinheiro de brinquedo, e como se estivéssemos obtendo mercadorias verdadeiras por meio de um truque."
Claro que a experiência do trabalhador brasileiro não é a mesma de um turista americano.
Mas fui retirar meus primeiros reais num caixa eletrônico. O banco Itaú tem dois tipos de caixa eletrônico. No modelo mais antigo, o dinheiro sai por uma fenda, depois de ruídos frenéticos, num movimento rapidíssimo, estroboscópico, uma nota acrescentada à outra, mais depressa que o próprio olhar. No tipo de máquina mais novo, esse folheio indecente e pressuroso se esconde atrás de uma gaveta metálica, que só abre, com velocidade discreta, quando o maço está prontinho para o bolso do usuário.
Este último modelo de caixa eletrônico é mais adequado aos tempos do real, uma vez que a moeda nova surgiu do nada, pronta como Minerva da cabeça de Júpiter, diante do olhar reverente e curioso dos cidadãos.
Peguei o dinheiro; apalpei-o. Senti a rugosidade confortante do papel, seu cheiro de cola nova, a virgindade greco-romana do rosto cego da estátua falsa da República.
Essas cédulas são bem ridículas. Parecem, como no texto de Updike, dinheiro de brinquedo, coisa de "Banco Imobiliário". O número que explicita o valor de cada nota, 1, 5, 10, aparece enorme, com a estridência necessária a uma população de crianças e de analfabetos.
No verso, a infantilidade se reitera, nas araras e cegonhas (não, são garças) de um álbum de figurinhas. "Nossos bichos".
O verde tropical, o rosa vomitivo, o abóbora –nada sério se propõe neste produto; exceto, talvez, o azul dos cem reais, que não tive em mãos, mas lembra a cor da nota de cem marcos alemã, "der blaue Riese", o "gigante azul", como eles orgulhosamente falam.
Ceticismo e otimismo, em todo caso, se equivalem neste momento. Como em todos os planos econômicos, os especialistas dizem que é um plano muito melhor do que os anteriores. E que tudo depende de...
No fundo, o real depende de tudo. Depende de que sejam feitas as famosas "reformas", famosamente impopulares, na previdência, na estrutura fiscal, no orçamento etc. Os mais ortodoxos dizem, e nada parece ir contra essa idéia, que se a nova moeda for emitida em excesso, que se o governo, para custear seus gastos, imprimi-la demais, ela se desvalorizará.
E o que já foi emitido? É muito ou pouco? Cito um editorial da Folha: "Ninguém sabe. Ninguém pode saber".
Será que privatização e reformas dariam a credibilidade e a eficiência de que o plano necessita? Não sei. Ninguém sabe.
Estamos embarcados nesta nova moeda. Desconfio, é claro, quando ouço os famosos apelos ao consumidor: se estiver caro demais, não compre. Rio quando se fala que a Sunab há de reprimir aumentos abusivos. A Suíça estaria mal se dependesse da Sunab para suas taxas de inflação.
Confesso que pensar muito nesse assunto me desespera. De posse de minhas notas de brinquedo, estou na primeira fase de Updike, hesitante em gastar demais.
Enquanto isso, vejo Rubens Ricupero na TV. Seu olhar é azul e limpo. Sua voz, turvada de um leve sotaque, vibra mansamente, num misto de velhice e juventude, de experiência e candidez.
No fundo, vivemos diferentes tipos, diferentes "variedades de experiência religiosa" –para usar o título de um livro aliás decepcionante de William James–: Funaro era o pastor dos milagres, propondo-nos o enriquecimento fácil, desde que chancelado pela fé. Bresser foi persuasivo e inverossímil; Mailson foi uma espécie de papa antes da Reforma; Collor era o falso calvinista, o Savonarola devasso, impondo-nos a ética do sacrifício e da austeridade enquanto Zélia dançava boleros, e ele próprio, apagadas as luzes, gargalhava, demoníaco.
Fernando Henrique, pai do novo plano, abandonou o ambiente doméstico, deixando dignamente uma pensão generosa a seu herdeiro, mais tímido, menos mundano e sorridente, mais consciente de seus pobres deveres.
Passamos assim do milagre funariano à ascese Collor, desta ao ateísmo de FHC, para cair em Rubens Ricupero.
E Rubens Ricupero é a beatitude sem milagres, o claustro sem segredos. Não compartilha do deboche monacal de antigas épocas inflacionárias, não é o pobre de espírito do otimismo bresseriano, não é a monja de luxúria que se escondia nos sensuais tailleurs de Zélia, não é o cientista desenganado, errante, gabola que foi Fernando Henrique.
É o beneditino, o apóstolo, o suave caminho, o "translúcido", como bem disse Carlos Heitor Cony há dias em sua coluna. Oferece ao vento suas novas notas de brinquedo. São dólares. Serão dólares? Quem sabe?
A fé no novo plano é questão de cada um. Mas, se houve fé no Cruzado, era uma fé imbuída de salvacionismo, de soteriologia. Se houve fé no Plano Collor, era uma fé imbuída de predestinação, de desgraça para os demais. A fé de Ricupero não é messiânica nem ascética. Omite as tentações respectivas do milagre e da exclusão, do prazer consumista e da perversão secreta.
Estamos diante de um plano católico, apostólico, romano. Fernando Henrique bate no peito, Ricupero comunga, Itamar se penitencia dos seus já esquecidos excessos carnavalescos. Depois dos profetas, o Novo Testamento.
A musa republicana das cédulas do real é uma Joana d'Arc. Acredite quem quiser. Ricupero nos propõe a Conversão.

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