São Paulo, quarta-feira, 6 de julho de 1994
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Marxismo e mercado

ANTONIO DELFIM NETO

Marxismo emercado
Antonio Delfim Netto
Há algumas semanas dissemos nesta coluna que as economias de tipo soviético já apresentavam defeitos de funcionamento insuperáveis em meados dos anos 60. E que a sua liquidação se processou não com Gorbatchov, mas ao longo de um penoso caminho de esclerosamento que levou um quarto de século. A grande crise mundial de 1982 apenas acelerou o processo de dissolução das economias centralizadas.
Há poucos dias, em uma reunião para conversar sobre problemas brasileiros, um cidadão atravessou a discussão e levantou sérias dúvidas sobre aquelas afirmativas. Atribuiu a Gorbatchov o mais sinistro espírito conspiratório.
Ele estaria a serviço do capitalismo internacional que, temeroso dos progressos soviéticos, afogou o "socialismo real". Procuramos mostrar, então, que o pequeno defeito desta teoria é que ela não consegue explicar o esforço desesperado feito na antiga URSS e nos seus satélites, a partir de 1965, para realizar uma reforma econômica.
Como escreveu G. R. Feiwel (que certamente não pode ser acusado de "desvio ideológico"), "enquanto o mercado não está em alta –e alguns até acreditam que está em baixa– na teoria do desenvolvimento econômico do mundo ocidental (em 1969!), é fascinante observar a sua vindicação na URSS e na Europa Oriental" ("A Era da Reforma Econômica do Planejamento Socialista", na revista Economia Internazionale, fevereiro, 1969).
A "utopia" socialista, construída a ferro e fogo por Lênin e Stalin, violava o velho ensinamento de Platão, segundo o qual, antes da utopia, é preciso produzir os "utopianos". O mito do "homo sovieticus" construído ao longo de décadas revelava toda a sua fragilidade.
O assassinato de 20 milhões de indivíduos e da fina flor da inteligência da sociedade não foi capaz de mudar o homem que presunçosamente chamou a si mesmo de "sapiens"!
Já em 1935, o grande economista e teórico do socialismo Oskar Lange reconhecia que a teoria de Marx era incapaz de auxiliar os pobres planejadores, porque não existia uma teoria microeconômica marxista. "É óbvio –dizia ele–, que a economia marshalliana oferece mais para a administração do sistema econômico soviético do que a teoria marxista".
É claro, também, que na disputa entre os "socialistas" e von Mises e Hayek, nos anos 20, a palavra "mercado" tinha significado muito diferente. Para os austríacos, o "mercado" era um mecanismo de obtenção de informações e conhecimento a serviço de empresários e consumidores, e não um mero construtor de preços relativos.
É duvidoso que Lange tenha alguma vez levado a sério essa concepção. O "mercado", para ele, nunca passou de um mecanismo de cálculo dos preços relativos. Pouco antes de sua morte (1965), ele ainda afirmava que o processo de "tentativa e erro" do mercado seria superado pelos modernos computadores!
Não adianta insistir nesse problema. A melhor coisa é reconhecer que, ao contrário do que pensava Marx, a "engenharia social" produziu ainda mais caos do que o mercado. Mas não é preciso adorar o mercado como se adorava o marxismo!

Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

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