São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Reforma e imaginação

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das maiores dificuldades para os candidatos à Presidência da República é mostrar ao eleitorado que têm uma proposta para o país e dizer como pretendem executá-la.
É verdade que alguns candidatos insistem mais na proposta –ou no sonho– do que em sua execução, até porque muitas de suas metas são inexequíveis. Mas, bem ou mal, os candidatos das principais forças políticas têm propostas e tentam mostrar como pretendem levá-las à prática.
Aproveito, por isso, este espaço para entrar no debate que realmente interessa, o das propostas de futuro para o Brasil e o das alianças capazes de concretizá-las.
Assusta-me o que se diz sobre o que seria minha proposta. Como as opiniões expressas quase sempre situam-se no contexto político e não propriamente acadêmico, em geral a crítica é feita ao que supõem ser um projeto "neoliberal". Para construir esse projeto, faz-se uma mistura entre o que supõem ser meu pensamento com uma também suposta inflexão política "à direita". Esta última, graças à aliança do PSDB com o PFL (esquecendo-se quase sempre o PTB). Na luta ideológica, o que se deseja projetar é a imagem de que eu teria resolvido vestir a máscara do "Consenso de Washington" e andar de braços dados com o clientelismo político "nordestino".
Para melhor estigmatizar o alvo, diz-se que, depois de eu ter repudiado tudo o que escrevi, não seria de estranhar que, desde 1991, quando teria forçado o apoio ao governo Collor –só evitado porque Covas se opôs–, estive agora materializando o "Consenso de Washington". Este, para os não-iniciados, refere-se ao conjunto de políticas ditas neoliberais, a começar pela estabilização da moeda através do ajuste fiscal e da reforma monetária, para prosseguir com as privatizações, a abertura da economia e a retomada do crescimento, no contexto de uma economia globalizada.
Inicialmente, separemos o que é história mal contada do que é análise objetiva de uma situação. Quanto ao apoio a Collor –e disso há testemunhas– a decisão de não participar do governo foi minha e de Tasso Jereissati, exclusivamente. Abrimos o debate no PSDB, discutimos a possibilidade e recusamos a participação no governo porque percebemos que não poderíamos influir nas decisões.
Mas, dirão os críticos, quiseram participar de um governo que era favorável ao "Consenso de Washington". Esta é a questão central. Desde o famoso discurso do senador Mário Covas, quando candidato à Presidência da República, sobre o "choque de capitalismo", o PSDB teve de confrontar-se com a grande questão de nosso tempo; como fazer funcionar a economia do país e como manter a democracia, ampliar a igualdade e assegurar a justiça social. Em um país como o Brasil, de pobreza e concentração de renda, essa temática é crucial.
Em outros termos, para resolver as questões não só econômicas como sociais, existe uma via social-democrática para o desenvolvimento sustentado e para a melhoria da vida do povo que se distinga, por um lado, da crença no automatismo do mercado e na força da empresa e, por outro, do intervencionismo burocrático-estatal?
É isso que está em questão nas eleições de 3 de outubro. E as respostas são várias. Simplificando, o candidato do PMDB volta aos temas e soluções dos anos 60 e reafirma que o crescimento econômico alavancado pelo setor produtivo estatal, com algum tipo de proteção ao mercado interno e um certo intervencionismo estatal, daria a fórmula para nosso futuro.
O PT, de modo mais confuso porque incorpora algumas preocupações internacionalistas e substitui o clientelismo tradicional pelo corporativismo, também parece apostar no protecionismo do mercado, na solidariedade internacional dos grandes países não totalmente integrados ao sistema produtivo global (China, Rússia, Índia, parte da África etc) e na força do mercado interno, sobretudo através das pequenas e médias empresas, bem como em forte regulamentação estatal, para fazer face, e logo, às grandes demandas sociais.
O PDT leva tudo isso ao exagero. Pretende não só fortalecer as grandes corporações estatais, como se volta, com ira, contra as "perdas internacionais". Embora formalmente filiado à Segunda Internacional, o PDT trava a luta contra o "colonialismo", a la século 19, e, sem ter compromisso efetivo e organizado com os movimentos populares, quer representar também a sede por justiça social e bem estar das massas marginalizadas, notadamente no campo da educação.
Em contraposição a estas propostas, os críticos da proposta do PSDB só vêem uma alternativa: o neoliberalismo, capitaneado pelo tal "Consenso de Washington".
Esquecem-se de que os partidos que se situavam "à direita", ou desistiram de ter candidatos e plataformas próprias ou, se os têm, eles não assumem tal postura, deixando-a aos cuidados de ideólogos isolados, como, por exemplo, Roberto Campos. Ao invés dos ideólogos da esquerda comemorarem a inexistência de propostas neoliberais em nossa política –graças à sua inviabilidade prática– fazem o contrário; pintam a cara do PSDB e de seu candidato, como se fossem a encarnação do "neoliberalismo".
Haja falta de imaginação!
É patético que os ideólogos que se crêem donos da verdade não percebam que o PFL apóia uma candidatura do PSDB, e não o contrário. E por que apóia? Porque os líderes mais lúcidos do partido reconhecem que é preciso (até mesmo para ganhar as eleições) reformular o ideário liberal, e mesmo liberal-social, e estabelecer uma ponte com as realidades do país.
Que realidades são estas?
É neste ponto que entra a proposta de minha candidatura. Como escreveu um dos críticos mais lúcidos, José Luís Fiori (Mais! de 3/7, à pág. 6-6), eu não abri mão de análise sociológica alguma. Assim como há 30 anos mostrei (o que na época era obscuro) que a "burguesia nacional" –ou melhor, a ideologia a ela imputada pela esquerda– não tinha a menor condição de propor um projeto hegemônico para o Brasil por causa do que chamei de "internacionalização do mercado interno", continuo crendo que a globalização da economia –queiram ou não os críticos– existe como consequência de uma nova forma (até tecnológica) de produzir. (*)
É esta questão que não está posta por meus adversários nem, portanto, é incorporada às propostas que eles apresentam. Por não reconhecerem, objetivamente, sociologicamente, economicamente, que houve uma mudança no padrão estrutural da economia e da sociedade contemporâneas, têm propostas regressivas.
Pensam-se na vanguarda, mas consubstanciam o atraso; suas referências valorativas estão circunscritas no horizonte do passado e não têm como dar curso prático às idéias –por generosas que sejam– que para eles representam o "progresso".
Mas só até aí a argúcia objetiva do já citado José Luís Fiori. Daí por diante, pensa que, assim como mostrei que havia uma relação dependente-associada entre a economia local e internacional, ipso facto, por "realismo", eu teria abandonado qualquer postura reformista e generosa para propor –pasmem!– a reconstrução de uma aliança oligárquica capaz de sustentar o "Consenso de Washington".
Para "provar" isto, pratica uma "falácia ecológica": eu é que teria sido "criado" para, propondo o real e a estabilização econômica, dar vigência ao neoliberalismo washingtoniano.
Haja liberdade pouco poética com os fatos e as intenções. Esquecem-se do principal: qualquer ministro da Fazenda, sério e competente, diante da ameaça hiperinflacionária que corroía o Estado e arruinava não só a economia mas a oferta de empregos e os salários do povo, teria de ser radical, isto é, teria de ir à raiz dos problemas. E, na conjuntura brasileira, a inflação passou a ser a esfinge: se não fosse decifrada, devoraria a todos.
Será este argumento mera racionalização? É ver o que está acontecendo na Venezuela para perceber que depois da tremenda crise político-moral, de tentativas frustradas de estabilização e de uma eleição que colocou no poder pessoas com pensamento nacional-popular, ao invés da implantação de uma "democracia de massas", ocorreram restrições constitucionais, houve crise econômica generalizada e será feita nova tentativa de estabilização. Só que agora à custa, provavelmente, de brutal preço, de perda de tempo precioso e de muito sofrimento do povo, a despeito das melhores intenções do presidente Caldera.
E com Allan Garcia, no Peru, foi diferente?
Não se trata, portanto, de colocar rótulos nem de fazer-se uma inversão temporal dos fatos, supondo-se que houve uma "inteligência política internacional e superior" que, como nova mão invisível, desta vez na política, ordenou a disputa eleitoral e dirigiu a ação governamental para impor a "pax americana" em nossa economia. Chega de artificialismo e de estereótipos conspiratórios deste tipo.
A política de estabilização proposta – sem monitoramento do FMI e sem passar por recessões – é apenas uma tentativa para assegurar condições de governabilidade e para permitir que o país chegue às eleições. Se os críticos, ao invés de distorcerem o que eu penso e proponho, percebessem que eu desejo reconstruir o Estado para permitir que se dê a guerra ao "apartheird social", chegariam a outras conclusões.
E este é o desafio, e a resposta a ele nada tem de neoliberal, mas sim de social-democrata que funcione em uma sociedade de massas, com muita pobreza e marginalização cultural, baseada em uma economia de mercado já inserida, em larga medida, na economia globarizada e ainda incapaz de reduzir as desigualdades.
Mesmo os atores políticos, como Lula, que não reconhecem o padrão estrutural da economia contemporânea, acabam por tentar convencer o resto do mundo que eles, na prática, não farão o que seus projetos supõem fazer: não denunciarão o acordo da dívida externa, não farão distinções entre empresas nacionais e estrangeiras continuarão a privatizar etc.
Como não sou incoerente nem reneguei minha tradição de análise sociológica, não preciso usar de linguagem diferente conforme o auditório. Mas daí não decorre que eu defenda o "livre mercado", que desconsidere a necessidade do fortalecimento do Estado, nem muito menos que deixe de ver a "dívida social" como a parte principal e mais urgente a ser resolvida da herança nefasta de nosso passado elitista e antidemocrático.
É neste ponto que reside a necessidade da imaginação sociológica para realizar as reformas.
Os críticos de pouca profundidade só vêem o neoliberalismo como alternativa às ideologias presas a um passado em extinção, nacional-autoritário, nacional-popular ou nacional-desenvolvimentista. Não percebem que o novo na situação brasileira (como ocorreu no Chile e em vários países) é que o clientelismo tradicional que eles pensam estar cristalizado no PFL (com grande injustiça, pois quem foi ministro da Fazenda sabe que essa praga está muito bem distribuída entre vários partidos, alguns dos quais do "centro" e da "centro-esquerda") está quebrado sem remissão. A crise da Comissão de Orçamento do Congresso foi só a gota d'água de um sistema que solidarizava interesses econômicos e interesses políticos das oligarquias regionais. Esse sistema não dará mais sustenção a governo algum.
É portanto, no mínimo uma subestimação de minha capacidade analítica e de minha imaginação (para não falar de meus valores) pensar que, diante da "realidade contemporânea", eu optei (e levei o PSDB a optar) por uma aliança conservadora. Sobre ser conservadora, esta aliança seria ineficaz até mesmo para servir de contraponto aos interesses do capitalismo internacional.
Pelo amor de Deus! Que os críticos sejam mais generosos ao julgar, se não as virtudes e o caráter pelo menos a inteligência dos que estamos hoje coligados ao redor de um programa de reformas viáveis no Brasil.
O grande calcanhar de Aquiles – ou o grande desafio – da presente situação brasileira é precisamente este: a inserção do Brasil no sistema produtivo internacional, para servir os interesses nacionais e populares, requer um Estado reformado capaz de abrir-se eficazmente às pressões e aos interesses da população, especialmente da maioria de pobres que vivem uma cidadania incompleta.
O PT aponta, com razão, para a causa da cidadania e para o clamor dos pobres. Mas sua política econômica (?) e sua visãi de mundo fazem com que a generosidade da proposta se esboroe na muralha da incompetência para ver o "novo" no plano global e, o que é pior, no comprometimento do partido com os interesses corporativos da burocracia. Por minimizarem a revolução produtiva que já ocorreu e o próprio papel da iniciativa privada (melhor dito societária) na produção e incorporação de inventos tecnológicos e por não darem a devida importância à crítica ao corporativismo estatal – forma moderna e não por isso menos negativa do clientelismo político – são incapazes de ajustar ao contexto contemporâneo a luta pela igualdade e pela erradicação da miséria. Não percebem que, a despeito das intenções que podem ser generosas, a ação da estatal que estimulam cria uma nova barreira à melhoria das condições gerais de vida do povo e ao avanço da economia para tornar possível aumentar e distribuir a riqueza.
Ora nossa proposta (minha do PSDB e dos que nos apóiam) é de reformar o Estado, enfrentando os interesses corporativos, para criar os instrumentos de uma nova articulação entre o país e a ordem mundial, sem que esta se dê, como hoje, à matroca, respondendo automaticamente às propostas internacionais ou refugiando-se no protecionismo de um "estatismo envergonhado", manipulado pelos interesses corporativos de funcionários, às expensas dos interesses da imensa maioria do povo.
Em outros termos, dado o colapso, que vem de longe da "burguesia nacional" e dada a ineficiência do Estado, estaremos condenados com ou sem "Consenso de Washington", à ausência de um projeto naiconal viável, se continuarmos na indefinição política quanto à forma e à eficiência do Estado. É para a reforma do Estado, tornando-o mais competente, com carreira e treinamento adequado dos funcionários, mais voltado para a inovação social e menos preso aos interesses corporativos das empresas estatais e dos segmentos "cutizados" da burocracia, que se requer na nova fórmula política.
Esta, repito, não poderá manter o estilo clientelístico-ideológico do passado, nem assumir a feição corporativo-imobilista. Se as forças políticas conservadoras de qualquer dos partidos aliados – ou dos demais partidos – tentarem opor-se a esta reforma, encontrarão na sociedade e nos setores lúcidos do PSDB e de seus aliados uma barreira intransponível. Nisto reside nosso compromisso político com o eleitorado.
Dará certo nossa proposta?
Como tudo na história, não se sabe de antemão. Mas o Brasil, do ponto de vista econômico, dispõe de condições favoráveis para, controlada a inflação, orientar-se por metas ambiciosas de crescimento, dando um salto qualitativo no seu padrão estrutural. Para isso terá de aumentar o "coeficiente de massa cinzenta" em nosso modelo econômico: população mais educada, maiores investimentos em ciência e tecnologia, senso de prioridades. Enquanto isso se processa é necessário aproveitar nossas vantagens estratégicas: metas audaciosas na agricultura, programas intensivos de treinamento de mão-de-obra, expansão dos setores de serviços, especialmente no turismo etc. E muito investimento (privado, local e internacional, junto do que seja possível no setor público) em energia, portos e transportes.
A grande questão a ser enfrentada pelo próximo governo, uma vez aceito este patamar de ação imediata, será política e social.
Ao invés de caminhar na direção suposta por meus críticos "de esquerda" (ou de imaginação curta?), a aliança capaz de viabilizar o salto necessário passará pelo apoio dos setores sensíveis à necessidade de reestruturação e de fortalecimento do Estado na direção apontada, tanto no meio empresarial como no meio sindical e profissional, e pelo realinhamento dos setores produtivos, nacionais e multinacionais, para, sob liderança política clara, enfrentar os novos tempos, implementando com urgência as reformas de estrutura capazes de dar à população mais empregos, melhor educação, saúde, habitação e alimentação.
Como, aliás, todos os candidatos desejam. Só que não dispõem das condições políticas para aglutinar as forças capazes de não só querer, mas de realizar competentemente as reformas na direção necessária para combatr na prática, e não só nas intenções, a pobreza e a miséria que tornam o Brasil um país deitado eternamente no atraso e no subdesenvolvimento. Hoje existem condições objetivas para reverter este quadro. Não fazê-lo, ou é incapacidade ou, o que é pior, imoralidade pela conivência com a exploração do povo e a injustiça social

(*) A famosa frase repetida sempre na Folha "esqueçam tudo o que escrevi", jamais foi dita por mim. Até hoje, apesar do meu desafio, ninguém foi capaz de dizer a quem, quando e onde eu teria disso tal despautério.

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