São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Filme revive poesia de Auden

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Quatro Casamentos e um Funeral", ao que consta, fez o que muitos outros filmes não conseguiram: chamar a atenção do grande público para um poeta, ou melhor ainda, para sua poesia. Um poema –"Funeral Blues"– do inglês Wystan Hugh Auden (1907-74), radicado em 1939 nos EUA e naturalizado americano em 46 (caminho inverso do de Henry James e T.S. Eliot), ao ser divulgado no cinema, acabou despertando renovado interesse pela sua obra.
Como ainda não vi o filme de Mike Newell, não posso sequer discutir quanto do interesse se deve à situação cinematográfica em que o poema é dito e quanto ao simples fato de ser apresentado, ou seja, se foi simplesmente sua qualidade que seduziu os espectadores. Uma coisa, porém, é certa: o texto, se não está entre os mais realizados ou ambiciosos que o autor escreveu, representa muito do que ele tem de melhor.
Trata-se de uma balada na antiga tradição anglo-escocesa, uma forma que Auden manejava com mestria e modernizou com sensibilidade e vigor. Uma balada, diga-se de passagem, sinceramente homossexual, pois as preferências erótico-amorosas do autor nunca foram exatamente um segredo e o inscrevem na plêiade de grandes escritores homossexuais deste século, isto é, num conjunto que, até o momento, chega a superar, em qualidade e quantidade, o das mulheres.
O homossexualismo do poema, contudo, revela-se somente duas vezes no uso do pronome "he" (ele) para se referir à pessoa amada e morta. Mudar-lhe o gênero, se quisesse, nada teria custado ao poeta que, no entanto, em sua obra completa, reunida na velhice, preferiu excluir esses versos a falsificá-los, demonstrando que, se ficara mais discreto, nem por isso havia se tornado hipócrita. Uma das suas características principais, inclusive, foi renegar na segunda metade da carreira muitos de seus melhores poemas de juventude, não por julgá-los ruins, mas apenas por discordar das opiniões que neles professava.
Após frequentar Oxford, Auden tornou-se célebre, sobretudo nos anos 30, como o líder da nova geração de poetas ingleses –Louis MacNeice, Stephen Spender e Cecil Day-Lewis, entre outros– que prometia superar os pioneiros modernistas como Ezra Pound e T.S. Eliot (ambos nascidos nos EUA). A geração, no entanto, não cumpriu sua promessa e, retrospectivamente, pode-se constatar que a grande poesia britânica do período foi feita não pelo grupo em questão, mas por excêntricos isolados: Basil Muntinq, Hugh MacDiarmid e David Jones. Entre os poetas que brilharam nessa década, apenas Auden continua prestigiado. O único outro escritor relevante do grupo é um prosador: Christopher Isherwood, que escreveu peças como seu amigo Auden, e criou as histórias berlinenses nas quais se inspirou o musical "Cabaret".
Na sua primeira fase, anterior ao período americano, Auden surpreendeu os contemporâneos pelo aparente engajamento de sua poesia que remetia à política inglesa, à ascensão do nazismo, aos refugiados alemães, à Guerra Civil Espanhola, aos conflitos na China etc. Pensavam ser uma revolta programática contra o que, da obra de seus antecessores imediatos, passava por esteticismo ou era de fato autêntico reacionarismo. Mas embora tenha visitado rapidamente o conflito espanhol (ao contrário de George Orwell, que foi ferido em combate) e fosse antifascista, a camada política era somente a mais superficial de sua obra. Não era, obviamente, isso que o movia ou preocupava o seu escasso marxismo já vinha deslizando rumo a Freud.
Ele nunca deixou de ser antes de mais nada um artesão preocupado com as minúcias de seu ofício. Os conselhos que dá aos seus pares na coletânea crítica "A Mão do Artista" deveriam ser leitura obrigatória não só para os principiantes. Seu aprendizado com a poesia romântica inglesa (por exemplo na "Carta a Lord Byron"), seu interesse pela música elizabetana, seu libreto para uma ópera de Stravinsky e a tradução de "A Flauta Mágica" são índices seguros de um gosto específico e de uma poética particular. Talvez a qualidade de sua prosa ensaística supere, contudo, a da poesia que, se bem que sempre exiba a elegância de um fazer consciencioso, está mais à vontade nas formas e, não raro, nos temas tradicionais, como se patenteia em "O Escudo de Aquiles", poema que traça um panorama negro do mundo contemporâneo.
Depois de escrever o célebre –e posteriormente suprimido– "Primeiro de Setembro de 1939" (data em que, invadindo a Polônia, a Alemanha iniciou a Segunda Guerra), onde se define como alguém composto de "Eros e pó", Auden adotou posições pessoais e políticas cada vez mais conservadoras, voltando-se também para a religião. Talvez prevendo seu próprio percurso futuro, ele escrevera no mesmo ano a grande elegia à morte do irlandês W.B. Yeats, onde dizia que "a poesia não faz nada acontecer", mas "o tempo que é intolerante diante dos corajosos e dos inocentes (...) idolatra a linguagem e perdoa todos aqueles através dos quais vive, perdoa a covardia e o preconceito e põe aos seus pés as honrarias". Foi esse o seu caso.

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