São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Uma luz virtual sobre o futuro

LUIZA FRANCO MOREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O último livro de William Gibson, "Virtual Light" (Luz Virtual), sugere que São Francisco, após a virada do século, vai ter pouco a ver com a cidade atraente e sofisticada dos dias que correm. Vai estar empobrecida, desorganizada, e pode praticamente desaparecer num paroxismo de especulação imobiliária.
Os leitores fiéis de Gibson reconhecerão neste livro o seu fascínio com o futuro próximo e a vida urbana, mas estranharão a ausência dos computadores, que nos romances anteriores eram os personagens mais surpreendentes.
Gibson é considerado um dos grandes escritores de ficção científica contemporâneos. Mesmo assim, e apesar de ter conquistado um público enorme e entusiasmado, Gibson continua bem desconhecido nos Estados Unidos.
Quando "Neuromancer", o primeiro romance de Gibson, aparecem em 1985, ganhou os melhores prêmios para ficção científica. Apesar disso, até hoje é um livro difícil de encontrar. É preciso ir a livrarias especializadas em ficção científica (que em geral são pequenas e estão em lugares fora de mão), e é preciso ter sorte, para comprá-lo.
A trilogia inicial de Gibson –"Neuromancer, Count Zero", and "Mona Lisa Overdrive"– imagina o futuro próximo com detalhes de pesadelo.
Computadores, bancos de dados e inteligências artificiais se comunicam instantaneamente num universo que abrange a terra inteira e ainda as estações espaciais: "cyberspace". Poder e riqueza são controlados por multinacionais gigantescas que investem na pesquisa tecnológica (e tem um ar japonês, às vezes europeu) ou na indústria do espetáculo (e têm ar de americanas). As cidades são imensas, sujas, violentas, habitadas por bandidos, assassinos, viciados, e principalmente por ladrões de "software".
Nesta trilogia, os personagens têm unhas de aço implantadas diretamente nas mãos, têm o corpo quase todo reconstituído após uma explosão graças ao mercado negro em órgãos, ou têm programas de computador escritos diretamente no cérebro. Mas um pouco sem perceber, nós nos identificamos com eles. Esses personagens sempre criam laços afetivos uns com os outros, e encontram espaço para a felicidade pessoal.
Um dos grandes prazeres de ler Gibson é que ele consegue levar suas histórias apocalípticas do futuro até um final feliz que é convincente (apesar de ser também ambíguo, circunscrito, questionável).
Em "Virtual Light", o primeiro romance após a trilogia, é claro que Gibson está à busca de temas novos. Não trata mais do "cyberspace"; agora, imagina o espaço urbano em que vai viver a geração de nossos filhos. As melhores partes do romance são as descrições minuciosas de São Francisco no começo do próximo século.
O trecho abaixo descreve a ponte que atravessa a baía para ligar São Francisco a Oakland. Aqui, a prosa cuidada de Gibson se move da contemplação da ruína urbana que aparece com o final dos tempos modernos para o fascínio com a capacidade humana de sobreviver. O escritor imagina que daqui a dez anos a Bay Bridge vai estar fechada porque foi tão danificada por um terremoto que o conserto ficou caro demais. Está, então, invadida por indigentes, que nela se instalaram para viver:
"Do ponto de vista da estrutura, o vão total tinha uma integridade tão rigorosa quanto o próprio projeto moderno, mas em torno dele havia brotado outra realidade, que perseguia fins distintos. Isto tinha acontecido pouco a pouco, sem plano preliminar, com o uso de todas as técnicas e materiais imagináveis. O resultado era uma coisa amorfa e, surpreendentemente, orgânica. À noite, iluminada por lanternas, neon reciclado, ou fieiras de luzes como as de árvore de Natal, a ponte tinha uma energia medieval inesperada. Durante o dia, de longe, lembrava ao antropólogo Yamazaki as ruínas vitorianas de Brighton Pier, na Inglaterra, como se estas fossem vistas através de um caleidoscópio de arquiteturas rachado.
O esqueleto de aço, os tendões encalhados da ponte se perdiam numa proliferação de sonhos: casas de tatuagem, diversões eletrônicas, bancas mal iluminadas, cheias de pilhas e mais pilhas de revistas amarelas, vendedores de fogos de artifício, balcões de sushi, lojas de chá e ervas, casas de penhor, barbeiros, bares. Sonhos de comércio, localizados mais ou menos nos dois níveis onde antes corriam os carros; enquanto mais acima, subindo até o mais alto das torres, pairava o bairro suspenso, com sua população incontável e suas áreas de fantasia privada."
A escrita de Gibson consegue um equilíbrio difícil: mostra tanto os detalhes inquietantes como o encanto desta cena futura.
Mas os personagens e a história deste último romance nem sempre se mantêm neste equilíbrio difícil.
A moça Chevette, que trabalha como mensageira, guiando uma moto de papel pelas ladeiras de São Francisco, é inocente e agradável demais; está longe de ter a mistura de violência e generosidade que, na trilogia anterior, distinguia a assassina Molly.
O policial exonerado Rydell é honesto e bem-intencionado, apesar de fazer muita bobagem; não tem a compulsão autodestrutiva, nem o humor, do bandido Case de "Neuromancer".
O enredo de "Virtual Light" gira em torno da paisagem urbana de São Francisco. Para Gibson, no mesmo lugar em que hoje está uma cidade agradável, pode se levantar uma rede de arranha-céus auto-suficientes do ponto de vista da energia. Idéia desagradabilíssima, mas que não chega a ser sinistra.
O enredo dos romances iniciais, sim, era inquietante, pois tratava do impulso das inteligências artificiais em se libertarem do controle humano. Parece que Gibson, ao tratar do futuro em que nossos filhos vão viver, perdeu um pouco a coragem e imaginou um mundo mais ameno. Criou também, personagens simpáticos, como gostamos de imaginar que vão ser nossos filhos.
Num ponto essencial, porém, "Virtual Light" é como os outros livros de Gibson. É ótimo de ler. Quem começa não consegue parar.

Onde encomendar:
"Virtual Lights", de William Gibson, editado pela Bantam, pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, tel. 011 285-4033, zona central de São Paulo)

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