São Paulo, terça-feira, 12 de julho de 1994
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Acesso e qualidade no sistema público de saúde

RAUL CUTAIT

A saúde no Brasil atravessa a pior crise da sua história. Muito embora a Constituição garanta oficialmente o atendimento à toda população, ela não contempla o financiamento que se faz necessário para a concretização de tão nobre objetivo.
Concomitantemente, a ausência de uma verdadeira política de saúde, as amarras administrativas, a má capacitação gerencial, bem como a desestimulante política de recursos humanos, perpetuam a dramática situação vigente, o que repercute na saúde de mais de 70% dos brasileiros que têm acesso única e tão-somente ao serviço público.
É ao nível dos municípios onde melhor se percebe a gravidade da situação da saúde no Brasil e, em especial, nas capitais, que, em geral, apresentam estrutura de atendimento inadequada em relação aos seus índices populacionais e má distribuição geográfica dos equipamentos de saúde.
Nesse contexto, dois grandes obstáculos impedem que o setor público ofereça à população um atendimento digno: a dificuldade do paciente de acesso, isto é, de conseguir ser atendido, e a qualidade do atendimento que o sistema de saúde lhe oferece.
Apenas como exemplo de dificuldade de acesso, pode-se citar a cidade de São Paulo, que chegou a atender 500 mil consultas eletivas/mês nos postos e centros de saúde da rede municipal e o mesmo número nos setores de urgência/emergência.
Essa gritante distorção é consequente a diversos motivos, entre eles: excesso de demanda nos postos de saúde, ausência de posto de saúde nas vizinhanças e reduzido contingente de médicos em diversas unidades do sistema.
Ao se dirigir diretamente a um pronto-socorro ou pronto-atendimento, o paciente entende ter garantido o seu atendimento, mesmo que de maneira precária.
O reflexo dessa situação no sistema de urgência/emergência da cidade é contundente, pois este, além da atual desestruturação para atender a demanda específica, dissipa seus recursos humanos e econômicos nos atendimentos de rotina.
A dificuldade de acesso ao sistema é a principal causa da revolta da população contra o sistema de saúde. Na verdade, é muito difícil para um pai ou mãe compreender as reais razões para a demora em se atender um filho doente. Lutar para conseguir um leito hospitalar para que o filho possa ser operado de uma apendicite aguda, como presenciei em várias ocasiões, é, então, desesperador. Por outro lado, o fato de o indivíduo chegar a ser atendido não lhe garante a qualidade mínima desejável.
Vários fatores contribuem para isso: demanda excessiva, condições locais de trabalho desfavoráveis, limitações de recursos, tais como equipamentos e remédios, incapacitação técnica, baixos salários. Somam-se a esses aspectos as limitações administrativas e a inadequação gerencial do sistema.
Medidas devem ser tomadas para que possa tentar mudar o quadro atual, destacando-se a urgente finalização do processo da municipalização da saúde, que gera a oportunidade de se instalar o tão falado e almejado sistema regionalizado, hierarquizado, com referência e contra-referência dos pacientes.
Lamentavelmente, a municipalização encontra-se atrasada, em especial nas capitais, em virtude de divergências político-partidárias e de dificuldades de financiamento por parte dos diferentes níveis de governo.
Quanto à qualidade do atendimento, são necessárias medidas que, além de propiciarem melhores condições de trabalho, objetivem a valorização dos recursos humanos da área da saúde.
Por isso, enquanto secretário da Saúde do município de São Paulo, lutei muito por um plano de cargos e carreiras na saúde, já aprovado, e que vincula salários e carreira à competência profissional, e não mais exclusivamente ao tempo de serviço. Esse plano, apenas o início de uma pretendida profunda reformulação da política de recursos humanos, não se propôs, por si só, a resolver os problemas hoje existentes, em especial com os médicos.
Assim, complementarmente, julgo ser da maior importância que se desvinculem as chefias médicas das administrativas, que devem, através de concursos, ser confiadas aos mais competentes. Advogo a criação, em toda a rede pública, de serviços com estilo acadêmico, que poderão inclusive treinar residentes, o que indubitavelmente traz mais eficiência e mais qualidade ao sistema.
Defendo também, de maneira veemente, que a rede se vincule às universidades locais, o que gera um sistema de controle de qualidade eficiente e de baixo custo. Além disso, é fundamental a participação da comunidade nas diversas estruturas do sistema de saúde, para exercer a função controladora que lhe compete.
Sabidamente, a qualidade promove melhor resolutividade. Consequentemente, mesmo com os limitados recursos econômicos existentes, pode-se conseguir, a médio prazo, uma inquestionável melhora do atendimento médico à população brasileira.
Para se atingir tal objetivo, impõe-se uma ampla reforma administrativa, aliada a uma nova cultura gerencial e de recursos humanos. Porém, mais do que tudo, é fundamental que exista uma verdadeira vontade política para as mudanças, em todos os níveis de governo: federal, estadual e municipal.
Enquanto isso não ocorrer, estaremos fadados a conviver com a deplorável e insustentável situação atual.

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