São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 1994
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Reflexões sobre a universidade pública

GIL DA COSTA MARQUES

É quase consensual a idéia de que a existência de um sistema universitário forte é uma precondição para que o país atinja a igualdade, do ponto de vista do desenvolvimento, com outros países ditos do Primeiro Mundo.
À medida que existe uma correlação entre um sistema universitário forte e competente e um elevado nível de desenvolvimento, é essencial que as universidades brasileiras avaliem de uma forma crítica algumas propostas de modelo para elas.
A recente greve nas universidades públicas propicia mais uma oportunidade de reflexão sobre a universidade pública brasileira e a necessidade de correções de rumo.
Um dos problemas que afligem as universidades públicas no Brasil é a falta de clareza quanto ao seu papel dentro do contexto de uma sociedade em desenvolvimento. É possível visualizar dois extremos de postura em relação a essa questão.
Num extremo do espectro ideológico encontram-se aqueles que vêem a universidade apenas como mais um instrumento no processo de transformação social. No outro extremo, estão aqueles que defendem uma universidade comprometida prioritariamente com o avanço da fronteira do conhecimento.
Nesse contexto podem-se encontrar desde pesquisadores alienados dos problemas sociais até aqueles que, apesar de considerarem que a prioridade deva ser pesquisa básica e aplicada, ainda assim entendem que a universidade tem de dar respostas e encontrar caminhos para a sociedade. O seu envolvimento deve-se dar, no entanto, sem mutilar nem descaracterizar a universidade como centro de produção do conhecimento.
Essas diferenças de visão sobre o papel da universidade numa sociedade em desenvolvimento acarretaram a existência de fóruns distintos para a discussão dos problemas e, naturalmente, propostas diferentes de modelo para a universidade. Sob alguns aspectos é quase como se tivéssemos criado um comando duplo dentro das universidades.
De um lado, as associações de docentes. Estas, nos últimos anos, têm estado mais envolvidas e preocupadas com o papel social da universidade. Defendem aumentos de verbas para as universidades, aumentos dos salários para docentes e não docentes, questionam como os recursos são distribuídos internamente, defendem eleições diretas para a universidade e a participação de alunos e docentes na escolha dos dirigentes em todos os níveis. Algumas defendem eleições paritárias ou com pesos iguais para docentes, alunos e funcionários. Claramente defendem posições mais populistas e, utilizando um jargão muito difundido no meio acadêmico hoje, mais democráticas.
O outro poder, institucionalizado, é aquele representado pelos órgãos centrais de direção. Nosso modelo de universidade é tal que, nesse aspecto, o reitor acaba encarnando o poder central da universidade. De qualquer forma, por mais centralizador que ele seja, ainda é um dos sistemas mais participativos do mundo. Muitas das decisões na universidade são tomadas em órgãos colegiados que têm representantes dos funcionários e estudantes. Isso não tem similar em nenhuma universidade norte-americana e provavelmente em nenhum lugar no mundo desenvolvido.
Nas melhores universidades do mundo as decisões são tomadas por pessoas que, dada a grande experiência acumulada na vida acadêmica, são escolhidas para decidir sobre a forma de promover as contratações, decidir sobre salários e as promoções. Desnecessário acrescentar aqui que essas instituições funcionam muito bem e aparentemente têm desempenhado o papel que a sociedade delas espera.
Note-se que a questão sobre como o poder deve ser exercido dentro da universidade é provavelmente um dos divisores de águas na questão da procura de um modelo para as universidades públicas brasileiras. A greve nas universidades públicas paulistas exibiu claramente esse aspecto de colisão de atribuições e de conflito de instâncias de decisão.
As entidades representativas, tais como associações de docentes e de funcionários, têm desempenhado um papel importante, diga-se de passagem, para a solução de um dos graves problemas das universidades. Trata-se da luta por recursos para as universidades e a batalha sem tréguas em defesa dos salários. Campanhas meritórias e importantes.
No entanto, o aperfeiçoamento das universidades requer também a atuação no sentido de correção da situação de descalabro administrativo existente em algumas das universidades públicas, condenar a falta de avaliações, reconhecer que na universidade se deve privilegiar a produção do conhecimento, apontar as distorções do sistema de promoção por tempo de serviço, combater o clientelismo, o inchaço provocado pelas contratações sem justificativas e a ineficiência que existe em todas as universidades.
Nenhuma entidade representativa consegue fazer o diagnóstico correto dos problemas das universidades e, por isso, as propostas se limitam à luta por maiores recursos e melhores salários.
Uma das reivindicações mais constantes no meio acadêmico, nas últimas décadas, tem sido a autonomia universitária. Forçoso é reconhecer que, num regime democrático, o alcance dessa autonomia tem obrigatoriamente de ser limitado. A universidade não pode pretender se desligar integralmente da sociedade que a mantém nem tampouco desejar uma independência que a leve a não prestar contas para ela ou aos seus representantes.
Nesse contexto, parece ser exemplar a autonomia obtida pelas universidades públicas paulistas. A autonomia financeira foi obtida através do comprometimento de uma fração fixa do montante que o Estado arrecada mensalmente.
Se podemos definir como utilizar os recursos públicos que nos são repassados, como justificar uma greve? Forçoso é entender que a autonomia que, afinal, todos queremos impõe limites às pretensões dos docentes e funcionários. O limite para as pretensões salariais esbarra no limite do orçamento da universidade.
Observe-se que destinar uma fração razoável para investimento e custeio é essencial e este aspecto é exatamente o que distingue as universidades públicas paulistas das universidades federais. Se comprometermos toda a verba com a folha de pagamento, teremos uma universidade apenas de fachada; pobre e sem condições de fazer a pesquisa, que é o único meio de obter o reconhecimento na área acadêmica.
Um dos grandes problemas das universidades públicas hoje é exatamente a ausência de uma visão comum sobre o papel da universidade brasileira. Sobre a necessidade de valorizar e promover a competência e os mecanismos que devem ser utilizados para tal fim.
Qual é o nosso modelo para a universidade pública? Qual a universidade que teremos no limiar do século 21 se perseguirmos um modelo de instituição sem similar no mundo desenvolvido? Não estaríamos pondo em risco estas importantes instituições transformando-as em "laboratório de experiências"? Como viabilizar uma universidade competente academicamente dentro da realidade socioeconômica do país?
O contínuo processo de politização da universidade e a simples defesa de teses populistas podem levar ao enfraquecimento dessa importante instituição. A universidade tem de ser regida por princípios próprios e de competência. Tem de se pautar por uma escala de valores que tenha como base o mérito acadêmico.
Pelo menos num aspecto, a greve foi útil. Propiciou a oportunidade de refletirmos sobre a universidade que queremos e aquela que a sociedade precisa. Oxalá concluamos que as duas são, de fato, uma só.

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