São Paulo, sábado, 16 de julho de 1994
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Plano Real: a pergunta não respondida

FERNANDO DAMATA PIMENTEL; MAURÍCIO BORGES LEMOS

A equipe econômica optou por juro alto, sob o argumento de evitar a demanda especulativa
FERNANDO DAMATA PIMENTEL e MAURÍCIO BORGES LEMOS
Em meio à gigantesca operação de marketing político-eleitoral engendrada pelo lançamento do Plano Real, emerge uma pergunta importantíssima que ainda não pôde ser feita: qual a característica básica de uma estabilização econômica duradoura? Que condições são necessárias para atingí-la e mantê-la? Este artigo pretende discutir a questão, colocando-a como ponto de partida para a análise do novo plano.
Em qualquer economia industrializada, a estabilidade de longo prazo é sintetizada pelo movimento permanente dos capitais excedentes gerados no ciclo produtivo (ou seja, os lucros) em direção à produção. É, portanto, o reinvestimento produtivo dos lucros –o que supõe e implica crescimento econômico– a verdadeira âncora para a estabilização.
Pelo menos desde o pós-guerra, sempre que este movimento básico de retorno à produção se interrompe, acentuando-se a dominância financeira no processo de acumulação de riqueza, a instabilidade se manifesta através da inflação.
Esta regra geral fica ainda mais visível em países capitalistas periféricos, como é o caso do Brasil. Nestes, dada a ausência de um núcleo endógeno de progresso técnico que viabilize a acumulação capitalista na forma produtiva clássica, surge uma permanente tendência à instabilidade. Nossa história recente mostra bem impasse. Sem crescimento econômico sustentado, a partir da década de 80, vemos exacerbarem-se o impulso para a fuga de capitais e a procura especulativa por ativos reais, gerando inflação crescente.
A tentativa de evitar isto, atraindo e mantendo o capital no circuito financeiro oficial, através de uma política de juros elevados nos títulos públicos, se obtém algum êxito de um lado (arrefecendo o mercado cambial paralelo, por exemplo), contribui de outro lado para acelerar ainda mais a inflação ao aumentar o patamar de ganho financeiro dos agentes econômicos.
Este tem sido o cenário brasileiro nos últimos 15 anos: a desconfiança estrutural em relação à nossa moeda é combatida com juros altos; estes agravam a escalada dos preços e retorna-se à origem –maior a inflação, maior a desconfiança.
A ruptura deste círculo vicioso, conquistando a almejada estabilidade monetária, passa, como dissemos acima, pela criação de um ambiente de investimento produtivo duradouro. São basicamente três as condições necessárias para a existência, no Brasil, deste ambiente.
A primeira delas é a reativação do investimento no setor público. É preciso que o Estado brasileiro, a partir de uma reforma fiscal que discipline adequadamente a arrecadação tributária, volte a gastar corretamente.
Priorizar os gastos com infra-estrutura e com melhoria das condições de vida da população (educação, saúde e habitação) significa gerar oportunidade de investimento produtivo para amplos setores da economia, hoje limitados ao jogo financeiro (no lado do capital) ou ao desemprego (no lado do trabalho).
A segunda condição essencial para a estabilidade duradoura é, no Brasil, um profundo rearranjo institucional de setor produtivo estatal, retirando as empresas hoje estatais do controle direto do governo federal e submetendo-as a regras específicas de gestão, nas quais a rentabilidade seja o pressuposto básico.
Nessa direção caminha a proposta que temos defendido já há longo tempo de constituição de um (ou mais de um, levando-se em conta especificidades regionais/setoriais) fundo de pensão público autônomo, não-estatal, formado por todos os contribuintes previdenciários, que funcionasse também como holding das empresas desestatizadas.
Não é o caso de detalhar a proposta, mas sim de chamar atenção para sua importância como instrumento capaz de recuperar a formação de poupança e a capacidade de investimento no núcleo produtivo central da economia (petróleo, telecomunicações e eletricidade), com os efeitos multiplicadores conhecidos.
Em terceiro lugar, e diretamente ligada à proposta anterior, impõe-se uma ampla reforma do sistema financeiro, com ênfase na criação de um mercado de capitais massivo e efetivo, capaz de cumprir o papel histórico de formador de poupança de longo prazo e alavanca para o crescimento.
A base para o surgimento deste mercado estaria dada através da larga desconcentração de renda e riqueza operada pela simples distribuição das quotas do fundo público autônomo acima mencionado.
Pois nenhuma destas três condições está sequer apontada pelo Plano Real. Ao contrário: o governo pretende vender ações de empresas estatais para quitar dívida financeira, pretende manter congeladas as tarifas públicas e pretende reduzir ainda mais o investimento no setor público.
Não há, portanto, qualquer medida que demonstre um mínimo de preocupação com a criação do ambiente de reinvestimento produtivo na economia, o que, por si só, pode condenar o plano ao fracasso no médio prazo. Ou seja: assim como noutros planos, esgotado o artifício que fez cair a inflação num primeiro momento (antes, congelamento; agora, âncora cambial e/ou monetária), na ausência das condições necessárias ao crescimento sustentado da produção, o capital percorrerá o mesmo velho caminho já conhecido –fuga para ativos reais, formação de estoques especulativos– e teremos a inflação de volta.
Mas o destino do Plano Real pode ser ainda pior na medida em que a "bomba relógio" do curto prazo não seja adequadamente solucionada.
A equipe econômica optou por uma política de juros altos, sob o argumento de se evitar o aparecimento de uma demanda especulativa (estocagem de insumos e produtos finais por parte de empresas e consumidores, corrida contra o câmbio etc) que acarretaria inflação de demanda, tal como já se observara no Plano Cruzado.
Ocorre, porém, que um nível excessivamente elevado de juros gera uma inflação de custos, mesmo que as empresas estejam financeiramente "líquidas", não necessitando tomar recursos no mercado. Na verdade, há um "efeito demonstração" em função do custo de oportunidade da aplicação financeira, pelo qual o empresário sobe seu preço para obter o mesmo rendimento do mercado financeiro. Vale dizer: a política de juros escolhida impede qualquer acomodação dos preços relativos. Eles tenderão a ser alocados irremediável e persistentemente para cima, retomando-se rapidamente o processo inflacionário. É bom que se lembre o exemplo dos Planos Bresser e Verão que, apoiados em juros reais ativos, tiveram duração efêmera.
A propósito da questão dos juros, registre-se que o argumento apresentado pelo presidente do Banco Central, Pedro Malan, em seu artigo de 10/07/94, nesta mesma página da Folha, não faz justiça à reconhecida competência e brilho do autor.
De fato, dizer que na Suécia os juros subiram exageradamente e ninguém reclamou da possível repercussão sobre os preços é, no mínimo, uma comparação infeliz. Aquele país nórdico, como se sabe, não passa, nos últimos 15 anos, por uma estagnação econômica prolongada, com redução da renda "per capita" e hiperinflação latente. Esta é, contudo, a situação do Brasil e é contra este pano de fundo que vai se desenrolar o enredo da política monetária conduzida pelo professor Malan.
O cenário assim construído aumenta a possibilidade de que o Plano Real não sobreviva o suficiente para provocar as esperadas "mazelas" que deverão ocorrer no médio e longo prazo, que são principalmente o atraso tarifário do setor público e a sobre valorização cambial.
Antes disso, ele pode não sobreviver à batalha do curto prazo, deixando sem resposta a pergunta que deu início a este artigo.

FERNANDO DAMATA PIMENTEL, 43, economista, é secretário municipal da Fazenda em Belo Horizonte (MG) e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
MAURÍCIO BORGES LEMOS, 43, economista, é secretário municipal do Planejamento em Belo Horizonte (MG) e professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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