São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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O sonho do celular

MOACYR SCLIAR

"Sabe qual é o meu sonho, cara? Quer saber mesmo qual é o meu grande sonho?
Eu queria ter um celular, cara. Um celular: esses telefones que o cara leva na mão, e que dá para a gente falar de qualquer lugar, da rua, do bar, do banheiro, de onde você quiser. É uma maravilha, cara. Não existe nada igual. É o meu sonho.
Você vai dizer: ah, mas é um sonho miúdo, insignificante. Você vai dizer que eu sou modesto, que eu vôo baixo. Outros querem carrões importados, roupas caras, apartamento de cobertura –e eu, quero só um telefone?
Pois é só que eu quero: um telefone celular. Aquilo é o máximo, cara. Aquilo te dá um status fora de série. Não sou só eu que acha isso, não: eu tinha um amigo que roubou um celular da loja só para andar com ele debaixo do braço. A coisa não falava, não tocava –mas dava a ele uma sensação do peru. Celular, cara. É outro papo. Não é orelhão, não é telefone comum. É celular. Coisa de gente fina.
Só que custa um dinheirão, e de onde eu ia descolar aquela grana? Porque eu queria fazer a coisa legal, registrar o aparelho, tudo certinho. Essas coisas custam caro. Não havia outro jeito: eu tinha de sequestrar um cara.
E aí a gente fez o sequestro, tudo direitinho, tudo bem planejado. E para o sujeito não incomodar, nós o colocamos no porta-malas.
Fomos presos, cara. E sabe por quê? Porque o pinta tinha um celular. De dentro do porta-malas ele pediu socorro. E nos pegaram direitinho.
Se estou zangado? Não estou zangado, não. É verdade que fiquei numa ruim, mas o que aconteceu provou que eu tinha razão: celular é outro papo. É a comunicação do futuro, cara. Um dia ainda vou ter um, andar com ele debaixo do braço e falar com meus amigos de casa, da rua, do banheiro. Sou até capaz de me meter num porta-malas e ligar para alguém, para ver como a coisa funciona.
Celular é o meu sonho, cara."

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