São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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A paulada da inflação saiu pela culatra

PAUL SINGER

Finalmente, deram a tão esperada paulada na inflação. Só que ela parece ter saído pela culatra. Na hora mesmo da conversão dos preços de cruzeiros reais em reais, a inflação deu um bote violento.
Entramos na era do real com preços elevadíssimos em relação aos salários urvizados pela média. É um arrocho salarial imenso, uma perda sensível do poder aquisitivo de quem vive do próprio trabalho.
Nossos preços em dólares já estão mais altos do que nos países do Primeiro Mundo, cujos salários são várias vezes maiores que os nossos. A Argentina, ao que parece, levou anos para chegar a esse tipo de desequilíbrio. No Brasil, bastaram 24 horas.
Parece claro que se tivesse havido um mínimo de coordenação por meio de negociações coletivas ao longo das cadeias produtivas, esse espasmo inflacionário nos teria sido poupado. Mas a equipe econômica tem ojeriza a câmaras setoriais e faz questão de provar que o mercado pode se estabilizar sozinho, mediante o jogo de oferta e procura.
Logo, se os preços dispararam e os salários não, a equipe deseja agora que os vendedores sejam forçados a recuar mediante uma "greve" dos compradores. O governo e os meios de comunicação de massa adotaram como lema para salvar o Plano Real: "não compre agora, que os preços vão cair".
Para a grande maioria, fortemente amputada em sua capacidade de comprar, a campanha é supérflua: não lhe resta outra alternativa senão usar o pouco dinheiro de que dispõe para comprar o indispensável. E não há dúvida de que o volume de compras caiu; agora, quanto aos preços, ainda não se pode dizer o mesmo, apesar da torcida da imprensa.
É uma das hipóteses favoritas dos economistas neoclássicos que os preços sejam flexíveis, tanto para cima quanto para baixo. Logo, se os preços puderem saltar para cima, por que não podem saltar para baixo com a mesma rapidez, deixando o consumo, a produção e o emprego praticamente inalterados? Infelizmente, não podem porque as expectativas são inflacionárias, não deflacionárias.
Os vendedores não hesitam em aumentar os preços que cobram porque confiam que os concorrentes e os fornecedores farão o mesmo, não havendo perigo de ficarem defasados do mercado. Mas hesitam muito em baixá-los porque nada lhes assegura que os outros farão o mesmo e, se não o fizerem, o vendedor que patrioticamente deflacionou toma prejuízo.
Pressionados pela queda do movimento, os vendedores podem até fazer "promoções", mas rebaixas definitivas, não.
Os pequenos e médios empresários, atuando em mercados competitivos, aguentam menos a ausência de compradores e serão os primeiros a ceder. Mas não os oligopólios, sobretudo os que fabricam produtos de primeira necessidade, que os consumidores não podem deixar de adquirir, seja qual for seu preço.
Esses oligopólios resistem à pressão deflacionária e mantêm os preços nos níveis que acreditam adequados. O que tem por efeito reduzir mais ainda as compras de artigos menos necessários. A deflação é assimétrica quando induzida pelo livre funcionamento do mercado. Ela é cruel para os pequenos, poupando os grandes, sobretudo os fabricantes de produtos indispensáveis.
No momento, assistimos o embate entre expectativas inflacionárias e pressões baixistas e não sabemos o que vai resultar.
Se vencerem as expectativas, os salários terão de ser aumentados, sancionando o bote inflacionário da virada para o real.
Se as pressões baixistas prevalecerem, os vendedores terão de mudar de expectativas e de comportamento. E a economia será jogada numa severa recessão.
É que, uma vez iniciada a deflação, ninguém sabe até onde ela irá. Se os preços, digamos, baixarem 10% em média, os compradores voltarão ao mercado? Provavelmente não, porque se valeu a pena esperar para pagar menos, vale a pena esperar ainda mais para pagar ainda menos.
A deflação, se ocorrer, poderá se revelar a "mágica besta" da famosa anedota do mágico que previu o naufrágio do Titanic... a bordo do mesmo.
Perguntaram-me numa entrevista na TV como é possível acusar o Plano Real de ser ao mesmo tempo "recessivo" e "eleitoreiro". Na realidade, a intenção de seus autores era que ajudasse a eleger Fernando Henrique à Presidência.
E não é preciso supor má-fé nisso –a equipe deve achar o plano bom para o país e para os seus desígnios políticos. O que a equipe não esperava era a exacerbação das expectativas inflacionárias por parte dos empresários, curiosamente num momento em que as lideranças empresariais não poupavam elogios ao plano e ao candidato.
Agora, a equipe opta pela deflação –e por uma deflação selvagem–, pois coerentemente se recusa a encaminhá-la através de reduções negociadas e coordenadas de preços nas cadeias produtivas.
Não acredito que estejam conscientemente sacrificando o objetivo eleitoral ao optarem pela deflação, pois provavelmente esperam que a recessão seja curta e suave.
Mas se enganam mais uma vez. Passaram quatro meses se atormentando com a "bolha de consumo" que poria tudo a perder, como teria ocorrido no Plano Cruzado.
Mas a realidade os surpreendeu com um salto mortal da inflação, que retirou dos assalariados de antemão qualquer ganho com a esperada queda da inflação.
Resta ver como reagirá o país: os consumidores transformados em salvadores do plano, os trabalhadores e seus sindicatos, os monopolistas, os pequenos e médios empresários. E, naturalmente, o eleitorado, que dará o veredito sobre o plano.

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