São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Tragtenberg faz manual de contraponto

LORENZO MAMMÌ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil sofre de uma carência crônica no ensino musical, sobretudo no nível básico. Existem várias instituições nesse campo, mas não há uma rede homogênea de escolas, que garanta a formação regular e uma classe de músicos. Isso se reflete também na literatura didática, irregular e extemporânea, geralmente mal distribuída. Escrever um livro de didática musical, no Brasil, é um ato em grande parte ditado por razões pessoais, e não pela pressão de um mercado.
É o caso desse bom manual de contraponto escrito por Lívio Tragtenberg, destinado, como não poderia deixar de ser, a um público diferenciado, do estudante regular ao autodidata. Tragtenberg é um compositor que soube recortar um espaço próprio no mapa da música brasileira, oscilando entre popular, experimental e erudito de uma forma um pouco jazzística, um pouco dada, sempre bastante original, Escrever um livro de contraponto, a matéria mais tradicional dos conservatórios, deve ter sido para ele um desafio e uma terapia: fazer as contas com os pais, ver quanto deles permanece em nós.
Em aparência, nada disso transparece no texto, que é simples, objetivo, perfeitamente adequado à sua função. Quem for muito cru de noções musicais percorrerá facilmente os primeiros capítulos, mas começará a encontrar dificuldade a partir do terceiro ou do quarto. Terá que cotejar esse texto com um manual de harmonia –mas isso é inevitável. Talvez haja alguns pontos em que a ordem expositiva poderia ser mais clara, como no caso de uma digressão sobre a fuga que precede (ao invés de seguir, como seria óbvio) a discussão sobre as formas de cânones. Em geral, porém, o livro alcança perfeitamente seus objetivos.
Sua maior qualidade, no entanto, me parece ser a confiança, desde as primeiras páginas, nas capacidades criativas do leitor. O estudante é estimulado a escrever seus próprios exercícios, experimentando soluções pessoais, e aplicar essas soluções a diferentes timbres instrumentais, ou a um texto a ser musicado. Nos exercícios mais avançados, Tragtenberg propõe alguns compassos de autores clássicos, como Mozart ou Beethoven, que o aluno deve desenvolver por sua conta. Desta forma, o texto evita a aridez típica dos manuais e adquire aquela elegância que Gilberto Mendes, no prefácio, diz reconhecer nele.
A procura da concretude, da qualidade sonora, desde os primeiros exercícios, me parece importante também por uma outra razão. É sempre maior o número de estudantes de música com acesso a aparelhos (computadores, teclados, seqüenciadores) capazes de reproduzir sinteticamente vários tipo de som e de estrutura musical. O piano deixou de ser o único instrumento possível para a prática da composição. Isso comporta uma mudança na aprendizagem da música: questões relativas ao timbre, às texturas, à orquestração não precisam mais ser adiadas para os níveis mais avançados de estudo. Lívio Tragtenberg não discute explicitamente essas novidades. Suas referências diretas são ainda os instrumentos acústicos, o piano, avoz. No entanto, talvez por ser ele próprio muito jovem, talvez por sua experiência de músico contemporâneo, escreveu um livro que me parece aludir continuamente, nas entrelinhas, a esse novo mundo e novos hábitos.

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