São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Cecília sobrevive aos fãs fajutos

VINICIUS TORRES FREIRE
DA REPORTAGEM LOCAL

Cecília Meireles é mais um daqueles casos de bons escritores vítimas de seus admiradores. Sua poesia, formalmente quase que inteira e francamente reacionária, agrada muita gente apenas pelos metros cantantes, melancolia mística e vaguidades penumbrosas.
Cecília Meireles na verdade foi colocada no parnaso dos poemas de e para moças. Houve crítico que já escreveu sobre ela: "como mulher, sente mais do que afirma". Sua obra sofre quase como a de Vinicius de Moraes, consumido popularmente como poetinha da paixão.
É verdade também que os dois ajudaram. "Que seja eterno enquanto dure", um hit de Vinicius, é puro kitsch. Versos como "Para os meus olhos, quando chorarem,/Terem belezas mansas de brumas,/Que na penumbra se evaporarem...", de Cecília, também.
Cecília Meireles parece fácil. Tornou-se palatável entre outras coisas pela aparência confessional e pelo caráter melódico e sintático de seus versos. Em quase todos os seus livros e em particular nos do começo de sua carreira há também a presença constante de ladainhas anasaladas e suaves sobre a natureza, com excesso de substantivação abstrata e adjetivação, o que dá o tom etéreo e místico que costumeiramente se associa à poeta. Há penumbras, neblinas e crepúsculos outonais, um ranço passado em água do aguado simbolismo brasileiro, em especial de Cruz e Souza.
Sua lírica constantemente tradicional, mas desigual, está recheada de tópicos comuns da história literária. O bucolismo, a melancólica lamentação sobre a fugacidade do tempo, sobre a brevidade da vida e sua irrealidade ("a vida é sonho") é comumente expressa nas medidas mais cantantes e tradicionais do verso em português (redondilhos e decassílabos) e ibérico em geral.
Por que então a poesia de Cecília não é obsoleta, apesar de tradicional, francamente arredia ao Modernismo, brasileiro ou qualquer outro? Por que sua delicadeza não é mero refrigério de almas cansadas?
Entre os muitos e arrepiantes defeitos de Cecília está o de editar mal os seus livros. A porcaria poética que produziu, no mesmo tom e maneira de seus melhores textos, se confunde com estes últimos. Outra confusão é considerar confessional a sua melancolia, como se houvesse em seus poemas um sujeito empírico, ou quase, a se queixar das mazelas pessoais, do tempo ou do mundo.
Para Cecília, este mundo não existe –ou melhor, só é possível percebê-lo através da construção de seus poemas melhores, e não de seus temas habituais. Na melhor poesia moderna os poemas só existiram enquanto tais como objetos de exílio. As palavras eram organizadas para se retirarem do universo da comunicação habitual, ou construíam ou recriavam objetos que não faziam parte deste mundo progressivamente intolerável. Ou seja, escrever poemas é não falar a língua comum.
Na sua versificação perfeita e muita vez epigramática, Cecília delicadamente buscou o exílio e preferiu ignorar qualquer traço de realidade. É certo que frequentemente criou apenas bibelôs pequeno-burgueses. Mas poemas como "Os Dias Felizes" (leia ao lado) redimiram muita das baladinhas e cançonetas de moça triste que escreveu.
No seu melhor, Cecília exprime seu desconforto com instantâneos de imagística ao mesmo tempo natural e suprarreal. A imagem da tristeza, como no caso de "Os Dias Felizes", é um "pássaro frustrado": formigas que sugam a proteína de um ovo azul quebrado por crianças. A natureza não é usada como um lugar de consolo e, nos melhores poemas, não há bucolismo. Há construção e não comunicação de sentimentos. E a tristeza é contraposta no mesmo poema à imagem dos dias felizes como ausência completa de avidez e interesse pela moenda produtivista deste mundo: os dias felizes estão entre árvores como pássaros, no silêncio.
Esta nostalgia de paz, foi sintetizada por Menotti del Picchia, em um dos textos críticos da introdução das "Obras Completas", da editora Nova Aguilar. Picchia escreveu que há em Cecília "a tristeza de uma enervante saudade por outro tipo de vida". Este exílio melancólico, quando construído –e não comunicado– é a melhor poesia de Cecília Meireles.

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