São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Górecki professa fé no ecletismo

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O compositor polonês Henryk Mikolaj Górecki, 60, participou na última semana do 25º Festival de Inverno de Campos do Jordão sem reger uma obra sua e sem fazer, a rigor, uma "master class".
Górecki (pronuncia-se gurétski) compareceu na condição de autor contemporâneo mais festejado pelo mercado nos últimos dois anos.
Viu sua "Sinfonia nº 3 'dos Cantos Plangentes' " (1976) ser executada pela Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa em Campos do Jordão no penúltimo sábado e em São Paulo no último domingo.
Pela primeira vez, a orquestra tocou a peça fora das fronteiras da Polônia. O próprio compositor recomendou a interpretação do conjunto à organização do festival. Assistiu às execuções aparentemente alheio, sentado ao lado do filho, o compositor Mikolaj, de 23 anos. Mas ele vigiava cada compasso e respirou aliviado quando percebeu que o resultado foi perfeito. O público veio abaixo nos dois concertos.
A "Terceira"', de Górecki, é a primeira sinfonia erudita a ter chegado à parada pop. Gravada pela própria OSRNP em 1981, ela só atingiu o sucesso em julho de 1992, três meses depois de ter sido lançada pelo selo Elektra/Nonesuch, na versão da London Sinfonietta e da soprano norte-americana Dawn Upshaw.
A obra começou no 17º lugar na parada clássica da revista norte-americana "Billboard". Na terceira semana já estava em terceiro e se manteve em primeiro por 36 semanas. Na mesma época, figurou em primeiro lugar na parada pop inglesa –uma posição que os colegas de Górecki consideraram excrescente e condenável.
Quando ela ganhou em 1993 os prêmios Grammy para melhor disco clássico e melhor disco orquestra de 1992, o francês Pierre Boulez, avatar da vanguarda pós-serialista, resmungou: "É música para empregadas".
Górecki, que conheceu Boulez nos anos 60, não se abalou. Sempre se portou simultaneamente como um "outsider" da vanguarda e do oficialismo do regime comunista.
"Não troco um 'lied' de Schubert pela obra completa de Boulez e Stockhausen juntos", disse à Folha numa entrevista exclusiva que se alongou pelo fim-de-semana em Campos do Jordão.
Ele cita Schubert por razões de influência. Protótipo do compositor pós-moderno, iniciou experimental, saltou para a ortodoxia pós-serial e tem flertado com as formas medievais nos últimos 20 anos. Hoje é reconhecido mundialmente como o cérebro do minimalismo europeu oriental, ao lado do estoniano Arvo Paert.
Górecki, porém, não se reconhece em estilo ou escola. Tanto assimilou o biedermeier austríaco Franz Schubert (1797-1828) como as lições modais do francês Olivier Messiaen (1908-1992). O conservadorismo do alemão Richard Strauss (1864-1949) se junta em seus 64 opus aos avanços serialistas do vienense Anton Webern (1883-1945).
Um mestre faz o papel de baixo-contínuo na produção de Górecki: Karol Szymanowski (1882-1937), fundador do modernismo nacionalista na Polônia. Nunca se esqueceu do nome dele nas enumerações de seus favoritos.
Nascido em 6 de dezembro de 1933, em Rybnik, Silésia (sul da Polônia), Górecki formou-se em composição em 1955 na Escola Estatal Superior de Música de Katowice (capital da Silésia) com o professor Boleslaw Szbelski, um discípulo de Szymanowski.
1955 é também o ano-zero de sua obra. Os "Quatro Prelúdios para Piano Op. 1" e a "Tocata para Dois Pianos Op. 2" foram publicados naquele ano. As obras lembram o nacionalismo szymanowskiano.
Górecki utiliza o folclore de seu país e se diz arraigado a Katowice. Nunca saiu de lá, apesar dos convites e de ter sempre gozado de liberdade de movimento. Com o sucesso da sinfonia, viaja com mais frequência.
"O motivo da minha obra é o Podhale", diz, referindo-se à região de encosta das montanhas Tatra, na fronteira da Polônia com a Eslováquia. Parece um nacionalista. Mas introduz uma nuança: "Conheci o Podhale antes de ir lá. Ele estava inteiro na obra de Szymanowski". Em outras palavras, quer dizer que sua terra é a música.
Acusado pelos vanguardistas de não haver fundado uma linguagem, ele defende o ecletismo formal. "Um compositor deve fazer seu estilo a partir de todas as formas, sem preconceito de tempo e espaço", ensinou durante um encontro com estudantes em Campos do Jordão. É uma profissão de fé que cai no gosto dos rumos atuais da música.

Folha - O sr. poderia explicar sua música?
Henryk Mikolaj Górecki - Não saberia fazê-lo. Conheço muitos críticos musicais que escrevem maravilhosamente sobre música, mas não sabem de que lado se lê uma partitura. Música é o que é. Uma pintura é o que é. Explicar é esvaziar-lhe o sentido. Comida serve para ser comida. Música para ser ouvida. Minha música tem uma característica própria, que não gosto de descrever. Eu sou eu, embora estude os compositores.
Não posso dizer que tenho uma técnica própria porque isso seria uma ousadia. Acho que o compositor contemporâneo não deve ser acadêmico e seguir uma determinada escola. Isso é tornar a música presa de certas normas. É destruir a arte. Os grandes compositores sempre consideraram as formas, mas as transcenderam.
Eu estudo muito as técnicas de Monteverdi, Messiaen, Alban Berg, Shostakóvitch, Mozart, Bach, Szymanowski para criar algo próprio. Coloco todas as estéticas existentes à minha disposição. Modalismo, dodecafonismo, serialismo weberniano, formas medievais, tonalismo, tudo forma um arsenal para mim.
São três os passos principais do meu método de composição: estudar obras de outros compositores sem citá-las explicitamente, escrever para um grupo previamente especificado e criar uma instrumentação e daí a forma nova.
Folha - Essa postura levou o sr. a romper com Boulez, Stockhausen, a escola de Darmstadt e a vanguarda?
Górecki - Nunca rompi porque nunca fiz parte da vanguarda. Tanto Boulez como Stockhausen foram ouvir músicas minhas em Varsóvia no final dos anso 50.
Nunca aceitei os cânones da vanguarda, ditados por Darmstadt. Sempre escrevi do jeito que quis escrever, sem que ninguém desse palpite.
Folha - Mas naquele tempo havia semelhanças entre suas composições e as da vanguarda. O sr. não aproveitou nada de Darmstadt?
Górecki - Darmstadt poderia não ter existido. Achava aquele negócio de pontilhismo, serialismo e superdodecafonismo uma coisa idiota. Aproveitei porque tomei contato com a obra de Webern e Schoenberg. Descobri que eu compunha como os pós-serialistas. Basta ouvir minha "Sinfonia nº 1" (1959), "Epitaphium" (1958) e "Scontri" (1960).
Folha - Por que Boulez e Stockhausen criticam sua obra?
Górecki - Nos afastamos. Eles gostavam de minhas partituras no início. Quem mais me incentivou foi Luigi Nono. Stockhausen esteve em Varsóvia em 1958, ouviu "Epitaphium" e gostou. Me lembro até hoje do que ele disse, uma frase bem sintomática do comportamento da vanguarda: "Muito bem, muito bom, mas a obra deveria ser mais cinzenta. É muito emocional. Deveria ser mais homogênea, fria". Tudo o que eu não queria fazer.
Boulez foi à Polônia foi ouvir meu "Concerto para Cinco Instrumentos e Quarteto de Cordas" (1957). Gostou. Ouviu "Epitaphium" e gostou. Mas em 1959 não entendeu a "Sinfonia nº 1". Segui para um outro lado. Hoje eles dizem que eu faço música de empregada. Eu não troco uma cancão de Schubert por toda a obra de Boulez e Stockkausen juntos.
Folha - Por que música é tão difícil?
Górecki - É uma abstração. Se eu pego esta xícara e mostro, todo mundo entende. Mas se começo a batucar nela, 99% não entende nada. Não adianta uma pessoa qualquer querer ler um livro de Proust, Thomas Mann ou poemas de Shakespeare. Ela não vai ter acesso à informação.
Arte não pode ser medida em volume de vendas. Esse tipo de coisa não tem nada a ver comigo. Quantos podem ouvir de verdade a obra de Messiaen?
Folha - Como o sr. ouve a obra de Messiaen?
Górecki - Ele está muito próximo de mim, na linguagem e no pensamento. Em Paris, eu ia ouvi-lo tocar órgão. Era uma coisa única, maravilhosa. Eu o achava tão grande que não tive coragem de conversar com ele. Hoje me arrependo. Ele criou uma linguagem original. Curiosamente, ninguém consegue compor dentro dos cânones dele.
Folha - O que o sr. acha da música eletro-acústica?
Górecki - Nada. Por mais que tentem me convencer que os aparelhos de hoje são mais sensíveis à mão humana, eu não acredito. Até hoje nenhum compositor eletrônico conseguiu fazer algo parecido com as partitas de Bach ou os "4 Últimos Lieder", de Richard Strauss. Nada como um violino, um piano de verdade. Os instrumentos tradicionais se deixam contaminar pelo estilo de todos os músicos.
A diferença entre música eletro-acústica e acústica é a mesma que existe entre um feijão artificial e um natural. O artificial pode resultar numa sopa até melhor. Mas jamais germinará como o natural.
Folha – Qual foi sua intenção ao compor a "Sinfonia nº 3". Críticos escreveram que se tratava de uma sonorização das atrocidades do campo de concentração de Auschwitz.
Górecki - É mentira. Ela não tem nada a ver com Auschwitz. O cineasta Tom Palmer foi o responsável por isso. Ele foi antiético ao fazer um documentário sobre a sinfonia. Usou imagens do campo de concentração sem a minha autorização. Comercializou o sofrimento humano. Eu jamais faria uma coisa dessas, ainda que um avô meu tenha morrido em campo de concentração e uma tia escapado de Auschwitz.
Utilizei frases de uma menina que ficou presa lá, mas o sentido é outro. A sinfonia é chamada "dos Cantos Plangentes" porque seus três movimentos são baseados em canções de despedida do Podhale, que são tristes. Só isso.
Folha - O sr. acha que o desafio atual do artista contemporâneo é conquistar a massa, chegar ao mercado?
Górecki - Quem escreve música não pode pensar na massa. Até ela precisa conhecer música para entendê-la adequadamente. Eu não espero ser entendido por todo mundo. Poucos compreenderam Bach em seu tempo. Se o público entendesse minha música, eu iria criar ovelhas. Nunca irei escrever música para a massa.
Folha - O que o sr. pensa da situação do músico diante das mudanças políticas da Polônia?
Górecki - Durante o comunismo eu pude viajar para todo canto. Nunca fui impedido. O problema era a falta de liberdade de criação. Tudo, até uma composição, era decidido pelo comitê central em Varsóvia. Isso felizmente mudou. Hoje os músicos vão embora da Polônia para ganhar mais dinheiro.

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