São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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O dragão enfrenta o santo

LOURDES SOLA

Esse diagnóstico é insatisfatório por não enfrentar uma questão de fundo: por que esse padrão de desenvolvimento teve êxito durante tanto tempo, sobretudo no Brasil? Por que só na década de 1980 assumiu contornos críticos de uma crise do Estado? Explorar essa questão obrigaria a incorporar teoricamente um fato novo, ou seja, os choques externos, dos quais o mais importante foi o de 1982, porque detonou a situação de extrema incerteza que conhecemos por crise(s) da dívida externa.
Isto não foi integrado como um fator analiticamente relevante pelo CW. "Ex-post", é fácil ver porque: atribuindo-se a crise a fatores predominantemente domésticos, a uma estratégia econômica de longa duração, transferia-se também a cada país a responsabilidade e o ônus de resolvê-la.
É esta a origem de um receituário que se pretende universal baseado em uma fórmula evolucionista, pois, independentemente das diferenças históricas e estruturais em seus pontos de partida, países tão diversos como os Tigres Asiáticos, o Brasil, a Rússia, a Bolívia, a Polônia e as Filipinas só têm uma saída para desenvolver-se.
Ou seja, a adoção de políticas reformistas cujo ponto de chegada é o Estado mínimo: uma certa modalidade de estabilização, ortodoxa, e reformas estruturais que se limitam à abertura comercial, às privatizações e, sobretudo, à desregulamentação da economia.
Os componentes ideológicos desse tipo de receituário devem-se não tanto à natureza das reformas, mas a dois outros postulados. Primeiro: a retomada do crescimento é derivável como consequência automática do tipo de estabilização e das reformas propostas. Esta é, precisamente, uma das modalidades que assume a crença na mão invisível do mercado, tão logo seja plenamente instaurado.
Segundo, é o caráter minimalista das reformas dadas como suficientes para mudar o padrão de relações entre Estado e sociedade de mercado; não se trata de reconstruir o Estado e redefinir suas funções, sua forma de ancoragem na economia e sociedade mas exclusivamente de garantir sua retração.
Ora, a crítica teórica mais acabada a esse tipo de proposta foi desenvolvida pelos neo-estruturalistas, graças à importância analítica que atribuem a um dos fatos novos –os choques externos– e às condicionalidades econômicas postas pelo CW, a partir de 1982.
Foi isso que lhes permitiu contrapor-se ao postulado da mão invisível. Por isso puderam dar conta, teoricamente, da dinâmica perversa que –na ausência de uma solução flexível e negociada para a dívida externa– redundaria na ampliação da crise fiscal do Estado, e/ou na tendência das economias latino-americanas a entrar em rota explosiva.
Daí também a proposta neo-estruturalista de estabilização, fundada na análise do caráter inercial do novo regime inflacionário que se instaurou nos anos de 1980 e cuja origem é atribuída a múltiplos conflitos distributivos (dos quais o Estado é um protagonista central).

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Um dos pontos fracos do diagnóstico neoliberal é que opera com outra mão invisível, que pode ter escapado aos economistas, mas não aos cientistas políticos atentos ao potencial reformista que a nova modalidade de dependência contém.
O principal problema do Consenso de Washington é que está em Washington. Isto significa que a globalização da economia e da vida política, em particular depois da queda do Muro de Berlim, se manifesta através do vínculo "indissociável" que as instituições relevantes estabelecem entre liberalização econômica e democracia.
Isto é um fato observável a olho nu. O que converte este vínculo em ideologia são duas coisas inter-relacionadas entre si. Primeira: o postulado de que a lógica do mercado e a da democracia se reforçam mutuamente (não obstante alguns custos sociais de transição), tal como ocorreu na história dos países anglo-saxões.
Segunda, a convicção de que essa experiência gradualista (de três séculos) é transferível em um par de anos aos países hoje submetidos às tensões de uma profunda reestruturação de suas economias, em um contexto político movediço e instável de democratização.
Carregar essa ideologia foi e é o "calcanhar de Aquiles" do CW. Isso implicou em confrontar-se com o dilema que cientistas sociais de várias origens (do Sul, do Norte e do Leste europeu) apontam.
Parte da produção intelectual na área específica de que trato gira em torno do que se convencionou chamar de "o paradoxo neoliberal". Ou seja, o fato observável de que os experimentos neoliberais foram bem-sucedidos ali onde uma ou mais das seguintes condições puderam ser satisfeitas: foram iniciadas por regimes autoritários; ou por democracias onde as burocracias e o poder executivo gozaram de alto grau de autonomia porque confinados das pressões –clientelísticas e/ou corporativas– e dos partidos; ou dispunham de partidos hegemônicos ou quase únicos.
Tais condições estão longe de projetar um perfil democrático dos governos –e do Estado– que inicia as reformas relevantes. Trata-se, portanto, de um diagnóstico extremamente crítico do paradoxo neoliberal, que Fiori transmuta em receituário. O mesmo ocorre com a forma pela qual entende a formação de coalizões governativas, nosso terceiro ponto.

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Um dos requisitos de governabilidade democrática é a formação de maiorias governativas, que no Brasil incluem um eixo parlamentar no Congresso e um eixo federativo, integrado por governadores suficientemente representativos.
Existe um hiato que está na raiz do problema da instabilidade característica das jovens democracias latino-americanas submetidas às tensões de uma estratégia de reestruturação econômica e de reforma do Estado, quaisquer que sejam.
Trata-se do hiato que existe, de um lado, entre a composição política da coalizão eleitoral que está na origem de um governo representativo e, portanto, legítimo; e, de outro, a coalizão governamental necessária para ordenar e viabilizar politicamente as tarefas que terá pela frente, façam ou não parte de sua plataforma eleitoral.
Este é um tipo de incerteza política constitucional por assim dizer. O que tem variado, em nosso continente é a forma pela qual esse hiato tem sido reduzido ou eliminado: uma travessia à la Menem, à la Paz Estensoro, lideranças que uma vez no governo iniciaram uma volta de 180 graus em relação às suas credenciais e alianças passadas? À la Salinas de Gortari, que conta com um partido hegemônico (ainda?); ou à la Fujimori?
A resposta obviamente varia de acordo com o quadro institucional preexistente, com a forma de inserção do país no sistema internacional, e com a qualidade das lideranças. O que não dá para dizer é que a recomendação de coalizões governativas estáveis seja parte de uma maquinação de Washington.
Tenho apenas um par de observações a fazer a esse respeito. Em primeiro lugar, todos os partidos com chance de chegar ao segundo turno preparam-se para o terceiro turno, ou seja, a formação de uma coalizão política que lhes permita governar.
Embora a aliança entre o PSDB e o PFL comporte riscos, está sendo feita a partir de um programa social-democrata de estabilização e de reformas estruturais que é diferente daquele que corresponderia à coalizão social de direita que, segundo Fiori, "destruiu o Estado Desenvolvimentista".
De resto, acho muito difícil deduzir a coalizão social que deveria "refundar o Estado antes de refundar a economia" de uma coalizão político-partidária, em um quadro partidário como o nosso, tão fragmentado e com identidades tão fluidas.
Uma razão adicional é que pouco conhecemos da sociedade que está emergindo não só do autoritarismo mas, sobretudo, de um período prolongado de crescimento transformador, seguido de uma década de reconcentração da renda; incluída aí a ideologia das chamadas classes dominantes e a cultura política das classes de baixa renda.
Em segundo lugar, a integração do Mercosul, a adesão ao Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e aos princípios da Rodada Uruguai, muito mais do que o CW, apontam para formas de inserção do país no sistema internacional bem distintas daquela que uma análise do tipo Guerra Fria pressupõe.
O PT e o PMDB terão que se definir, portanto, e produzir rapidamente não apenas um programa de estabilização, mas também de reformas liberalizantes.
Essas são questões para as quais não há resposta segura. Por isso mesmo, devem fazer parte de uma agenda de pesquisa. Urgente. Pois, como disse Heidegger, saber é poder aprender.

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