São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Para os amantes da "trash TV", quanto pior o programa, melhor

SÉRGIO DÁVILA
DA REVISTA DA FOLHA

Quem nunca assistiu àqueles programas inassistíveis que atire a primeira pá de lixo. Há uma insuspeitada legião de fanáticos pela "trash TV" – ou TV do lixo. São os trashers, que consomem até dez atrações do tipo nas emissoras.
O objeto de culto: produções mambembes improváveis que se levam muito a sério. Tais obras vão ao ar em redes pequenas e atingem 1 ponto de audiência na média. O grande mérito é a absoluta ruindade do que se mostra. Paradoxo? Sim, eis a graça para os trashers.
Maria Luiza Lazzareschi, 21, é um caso típico. A estudante de Direito gasta três horas de seu dia à frente da TV, se deliciando com pelo menos quatro clássicos do gênero. Seu preferido é o campeão "Chaves".
Exibido há nove anos pelo SBT, este programa é o único a fugir da regra de baixa audiência –atinge picos de até 17 pontos. "Não tenho vergonha de confessar que adoro o 'Chaves"', diz.
"É um tipo de humor tão ingênuo que diverte", acredita. Na verdade, mais do que o desastrado Chaves, a estudante prefere o personagem secundário Kiko, que sempre se dá mal.
A diversão de Maria Luiza não se resume a isso. Imperdível para ela também é o "Amazing Discoveries", série de comerciais americanos, dublados, que encerra a programação da Bandeirantes e oferece produtos pelo telefone 1406.
"Você não faz idéia do que já tem aqui em casa: facas Ginzo, meias Vivarina, o detergente DD7 e vários aparelhos de ginástica", diz. "É um ruim tão irresistível que você acaba caindo."
O antiquado "Cozinha Maravilhosa da Ofélia", na mesma emissora, também é obrigatório: "Anoto todas as receitas". Outro que a estudante já andou dando uma olhadinha é "Atayde Patreze Visita", da Record. "Queria ver ele falar 'É um luxo!"'
Fernando Zarif, 33, também é audiência do "Chaves" –para ele, "eterno". Mas o irrequieto artista plástico se delicia com uma descoberta recente: a telenovela venezuelana "A Revanche", exibida pela Record.
Não perde um capítulo. "É maravilhosa", diz Zarif. O que mais o atrai é o recurso usado para diferenciar ricos de pobres. "Não pelas casas, pois todas são iguais, mas pelos detalhes", define.
"Casa de rico tem uns vitrais superfalsos. E muitos enfeites", diz ele. "Um dia, apareceu um Buda fosforescente de chorar!". Outro diferencial seria o figurino. "As ricas são peruésimas, com vestidos de oncinha e paetê de dia", delicia-se.
Zarif, trasher viciado, enxerga traços da cultura até em dublagens. "Já ouvi um 'Seu garçom, traga uma Maria Sangrenta"'. A explicação do fascínio: "Se estivesse no Primeiro Mundo, veria programas de Primeiro Mundo. Como moro no Brasil, vejo 'A Revanche'."
A geografia não é o único fator. O programador de computadores Christiano Nunes, 29, por exemplo, louva as propriedades terapêuticas. "Já que não liberam a venda de Valium sem receita, recomendo o 'Pescadores do Brasil', da Gazeta", diz. "É tiro é queda."
E mais. "Estes programas são ótimos também como ruído de fundo para se fazer outra coisa", acredita. "Às vezes, se você está só, lendo ou falando no telefone, nada como um bom '25ª Hora' para encher o ambiente."
Teórico, o cineasta Vitor Angelo, 26, tem outra explicação: "O que nos prende à frente da TV é a graça involuntária que estes programas transmitem". Para ele, "o fato de o 'Programa João Kleber' se levar a sério é motivo de muito riso".
Há até quem tenha sido trasher mas decidiu "largar o vício". É o caso de Cláudia de Souza, 29. A professora de história chegou a acompanhar a programação da TV do início, de manhã, ao fim, na madrugada.
"Assistia a tudo, inclusive os ruins", lembra Cláudia. O programa "Mulheres", na Gazeta, era hit. Hoje, ela dedica apenas seis horas por dia à TV. "Mas perdi a paciência com o trash", diz.
A professora de história tem uma tese curiosa, que explicaria a peculiaridade da legião: "Você fica na confortável posição de crítico sem culpa. São tão ruins que vale a pena falar mal depois de assistir".
Agora, até a TV a cabo começa a ser invadida. O ator Denis Victorazo, 27, assinante da Globosat, não perde por nada os telejornais mexicanos e os programas de auditório espanhóis: "São tão ruins que deixam os nossos parecendo obras de Fellini."
Denis recomenda ainda alguns programas alemães que, embora não entenda a língua, pode garantir que são trash. E um enlatado, "The Kids in The Hall", do Multishow. "É um 'TV Pirata' ainda mais underground, propositalmente trash", diz.
O ator paulistano tem experiência no assunto. "Já dublei alguns episódios de 'A Revanche"', lembra. Segundo ele, as pessoas reclamam da dublagem porque nunca ouviram o original: "Além de os atores já acordarem maquiados, eles falam com a voz maquiada!"

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