São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 1994
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Aldous Huxley faz o elogio à inteligência

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Comemorou-se ontem, o centenário do escritor e ensaísta inglês Aldous Huxley (1894-1963). Dizer "comemorou-se" é um pouco de exagero. A fama, o interesse, a leitura das obras de Huxley têm declinado bastante: fenômeno injusto, mas também justificável.
Seu maior romance, "Contraponto", é de 1928. Li o livro quando era adolescente, e tive a descoberta de uma total liberdade de pensamento, de uma riqueza e de uma vitalidade enormes na discussão de idéias abstratas, de temas filosóficos ou quase-filosóficos.
Talvez mais do que isso. O que os melhores romances de Huxley apresentam (penso em "Sem Olhos em Gaza", ou "Também o Cisne Morre") é o espetáculo de uma inteligência "em funcionamento". Ou seja, não são livros em que o autor, inteligente ou genial que seja, apresenta o resultado de seu trabalho, o fruto de suas conclusões. Vemos a inteligência dele funcionando– o pensamento se constrói, se exibe, à medida que nós próprios vamos lendo.
É claro que, com isso, o leitor se sente também mais inteligente. Relendo "Contraponto" hoje em dia, senti o mesmo prazer com as discussões intermináveis, com os traços de espírito, com as originalidades mentais que ocupam os diversos personagens do romance.
Mas percebi outra coisa desta vez. É a extrema sensibilidade do autor no que se refere às dores do coração, aos ciúmes, às suspeitas sentimentais, aos volteios bruscos e inexplicáveis da paixão.
Temos, portanto, um escritor inteligentíssimo, capaz de transcrever os mais interessantes debates de idéias, e um escritor sensibilíssimo, capaz de anotar as sutis mudanças de sentimento, as súbitas reações de raiva e de amor que atravessam seus personagens.
Mesmo assim, a fama de Huxley está em declínio. Mesmo assim, seus romances não são tão bons quanto pareciam. Por quê?
A primeira explicação talvez seja um pouco injusta. Romances como "Contraponto" e "Sem Olhos Gaza" pareceram, ao leitor dos anos 30, uma verdadeira proeza técnica. Huxley narrava uma história, ou melhor, várias histórias, sem assumir nenhum foco narrativo. Isto é: deslocava sempre a narração, contando os fatos a partir de um personagem, depois de outro, em seguida de um terceiro. Modificava a sucessão dos eventos no tempo, contando uma coisa ocorrida em 1905 depois da coisa acontecida em 1921.
Esse virtuosismo narrativo parecia de "vanguarda" tempos atrás. Demorou um pouco para percebermos que Huxley não era o "gênio", o inovador, o revolucionário da forma narrativa que se acreditava. Estava mais para Thomas Mann que para Joyce.
Mas também a comparação com Thomas Mann é desfavorável a Aldous Huxley. Estamos diante de mais uma injustiça. Lendo Huxley, o espetáculo da inteligência pura aparece desde as primeiras páginas. Thomas Mann, se podemos dizer assim, não tem o brilho de Huxley, é mais pesado.
Contudo... contudo, Mann tem uma capacidade de criar personagens, uma "arte" no enredo, um vigor, uma profundidade, que Huxley está longe de atingir.
Na minha opinião, Huxley era um sujeito inteligente demais para escrever romances. Seu interesse pelas idéias abstratas superava o interesse que ele pudesse ter acerca de pessoas humanas, de paixões humanas, de erros, de misérias, de felicidades humanas.
Estranhamente, Huxley não era um ensaísta tão bom quanto seria de crer. Uma mente privilegiada, capaz de todas as retorções e paradoxos, teria de fazer grandes ensaios. Mas não é o que acontece. No fundo, os melhores ensaios de Huxley, as grandes discussões de idéias que faz, estão na boca dos personagens de seus romances.
Será que, então, Huxley foi um ensaísta frustrado e um romancista incompleto? Será que errou de alvo? Será que sua inteligência se perdeu num duplo fracasso?
Minha resposta é uma só. Leia qualquer coisa que Huxley tenha escrito. É uma maravilha. É mais maravilhoso se você for adolescente –isto é, se você tiver a frieza, a crueldade, o interesse intelectual e a falta de indulgência humana que caracteriza os adolescentes. Mas também será maravilhoso se você for adulto –as sabedoria irônica, a esportividade discreta na discussão de idéias, o misto de petulância e pertinência que ocupa as indagações do autor, tudo isso é fonte de prazer.
Trata-se, contudo, de um prazer mais intelectual do que estético. Huxley é um romancista mediano –seus personagens têm pouco relevo, são meros porta-vozes das idéias do autor. "Admirável Mundo Novo", seu livro mais famoso, é esteticamente um fracasso. "A Ilha", contraponto utópico da anti-utopia expressa no romance anterior. Também deixa a desejar.
O que resta de Huxley, hoje, na comemoração de seu centenário?
Acho que o que resta é, acima de tudo, sua curiosidade intelectual. Era capaz de interessar-se por qualquer coisa. No fim da vida, experimentou o LSD, informou-se sobre o budismo, prefigurou, no final dos anos 50, a moda ecológica, o comportamento dos hippies.
Tudo isso o torna, claro, mais antiquado do que nunca. Sua mensagem, entretanto, é atualíssima: trata-se de não deixar nunca o cérebro descansar.
Não foi, de modo nenhum, um gênio da literatura. Não foi, de modo nenhum, filósofo. Tinha mais inteligência do que talento, e mais talento do que genialidade. Mas quanta inteligência! Vale a pena ler, só por isso.

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