São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A rua para o povo da rua

ALDÁIZA SPOSATI

ALDAÍZA SPOSATI
O frio intenso provocou a lotação dos quatro albergues temporários existentes na cidade. Somente na noite de 10 de julho foram abrigadas 1.163 pessoas, segundo a Prefeitura de São Paulo. Esse número é pouco mais de 20% dos adultos que hoje vivem nas ruas de São Paulo.
Visitei recentemente esses abrigos e pude constatar o expressivo número de desempregados. Entre eles encontrei técnicos em eletrônica, cabelereiros, cozinheiros e até tradutores, o que reafirma a crise econômica do país e a necessidade de uma política de geração de renda, inclusive nesses locais. A falta de uma política pública mais eficaz poderia ter evitado ou diminuído o número de mortos nesse inverno (17 ocorrências).
Não bastasse esse quadro preocupante, o prefeito Paulo Maluf ainda promulgou a lei 11.623 transformando os baixos de viadutos em estacionamentos a serem administrados por entidades sociais.
Em sua justificativa, publicada nesta Folha, o vereador Hanna Gharib (PPR), autor da proposta, assume que "os viadutos não serão mais tocas de mendigos".
Antes de solucionar o problema dos carros, precisamos resolver o abrigo das pessoas. A iniciativa tem imperfeições gritantes com essa realidade.
Em primeiro lugar, ao desconsiderar as pessoas que sofreram uma sucessão de perdas (emprego, família, saúde, documento etc.), como se elas fossem "produtos descartáveis que precisam sair do caminho". Isso fere a dignidade humana, que deveria ser um princípio básico de qualquer legislador.
O projeto também não diz o que fará com a população e os trabalhos sociais que já ocupam os baixos de viadutos, como regulamenta o decreto municipal 28.649/90.
O que acontecerá com o trabalho das senhoras católicas na avenida 23 de Maio ou com os serviços sociais prestados em frente à própria Câmara Municipal, da qual o vereador faz parte? Irão igualmente para o olho da rua?
Por isso, a lei esconde outros interesses. Sob o argumento de preservar o visual e a limpeza da cidade, transferindo a gestão dos baixos dos viadutos para entidades como o Rotary e o Lions, o prefeito apenas reafirma sua intenção de, uma vez mais, privatizar o espaço público, na tentativa de se esquivar de uma responsabilidade que lhe petence.
A iniciativa sequer envolve a Secretaria Municipal da Família e Bem-Estar Social. A afirmação de que "o morador de rua precisa de casa" é correta, porém fica demagógica quando não é proposto na lei como a população de rua terá acesso à moradia.
O município precisa urgentemente de uma política pública de assistência social eficaz e moderna. O Congresso aprovou a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que traz novidades importantes nesse campo. Enquanto isso não acontecer, por omissão ou incompetência da administração pública, cabe à sociedade civil continuar cobrando a respeito à dignidade humana.
Não construiremos uma sociedade diferente sem que nela não estejam contemplados os direitos mínimos de cidadania, particularmente daqueles que a própria sociedade produziu e que o prefeito, através dessa lei, quer rejeitar.

Aldaíza Sposati, 48, é professora-titular do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e vereadora pelo PT na Câmara Municipal de São Paulo.
fim

Texto Anterior: Pará; Amazonas 1; Amazonas 2; Amazonas 3
Próximo Texto: Inscrições para Prêmio Criança já estão abertas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.