São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 1994
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Éramos cúmplices no manejo das facas

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Li o livro de Patrícia Melo, "Acqua Toffana", (Companhia das Letras, 1994, R$ 11,50), um "thriller" brasileiro, do tamanho de dois contos gordos da "New Yorker". Não é um livrinho de receitas, como interessaria a essa coluna, mas mostra os tempos e os temperos de uma mulher com medo de morrer e de um homem com vontade de matar.
Patrícia Melo, quando se casou, pediu que fizéssemos a comida da festa. Eu, a cozinheira gorda, de mãozinhas de almôndega e dedos de croquete, já deveria ter desconfiando de Patrícia, de suas armas, facas e venenos. Hoje, me lembro dela como duas. Uma –a moça executiva–, que sabia exatamente o que queria, desde a sequência dos aperitivos até a disposição dos móveis, projeto a ser executado tim-tim por tim-tim. E –a noiva–, Madonna de pele branquíssima, cabelos de ônix, boca vermelha de sangue. "Dressed to kill".
E agora, depois do livro certeiro, econômico, me preocupo com seu casamento e com a ingenuidade do bufê. Explico. Fazer a comida de um casamento é compactuar com a cerimônia, é ser testemunha, é ser responsável, é ser madrinha.
Até que o casal se mudasse, sem deixar endereço, o bufê mandava uma carta mensal com sugestões e receitas. Receitinhas de bolo de laranja com cobertura de coco, biscoito de polvilho das avós, pequenos ensopados. Ah, ridículas banqueteiras...
O que terá feito Patrícia com as receitas das avós? Com certeza já sabia dos nossos segredos mais recônditos, dos nossos fingimentos... Que éramos suas cúmplices no manejo da faca, do tiro certeiro, do sufoco, do afogamento. Conhecíamos as facas de gume profundo.
A menina-noiva não queria saber de fritar, cozinhar, amassar, misturar, adicionar. Tinha dentro de sí, ainda insuspeitado por nós, o instinto das cozinheiras, das "serial killers", gosto de estrangular, esfaquear, mutilar e acabar. Condutopáticas. Todas as receitas do mundo são exercícios de crime.
Toda a comida é precedida de assassinatos maiores ou menores. As pessoas se calam, mas não há almoço, nem lanche, nem jantar, sem morte matada. Mesmo os canapés inocentes, milimétricos, o "carpaccio" se enrolando como flor de sangue, o estilete fino do salmão sobre o pão preto, o fígado gordo besuntando a torrada, a rodela com palmito escondem crimes.
Voltando ao casamento de Patrícia, como andará agora nossa noiva? E o marido, estará vivo, ainda, o marido? Ou foi picado em tirinhas sobre o chão de parquete do apartamento antigo?
Assassinos de cara boa, disfarçados, sempre moraram em livros famosos. "Françoises" proustianas matando frangos com prazer inusitado, cortando-lhes o pescoço por baixo da orelha, recolhendo o sangue que escorria, murmurando com ódio: "Excomungado!"
Toda refeição tem tragédia na copa, ingredientes sangrentos, queimaduras, esfolamentos, escalpelos, que ninguém se engane!
Alice B. Toklas também entendia da inevitabilidade do crime. Cometeu seu primeiro assassinato quando ganhou uma enorme carpa, viva, olho translúcido. E tinha que acabar com ela antes que Gertrude Stein chegasse cheia de medos e pruridos.
Pegou uma faca afiada, enorme, cobriu a mão esquerda com um pano de prato, e cravou-a na base da coluna vertebral da bichinha. A carpa derreou para um lado, morta e mole e Alice para o outro, numa poltrona. Acendeu um cigarro e, trêmula, esperou que a polícia viesse buscá-la. Como não veio, continuou sua bem sucedida carreira. Na hora de matar pombos "enxergava" com as mãos os pescocinhos frágeis, as plumas, os ossos pequenos estalando, o estertor, o amolecimento súbito da ave.
Patrícia Melo, cúmplice noiva, nossa irmã no crime em série. Suas cozinheiras desejam a você carreira longa, outros livros bem escritos, com a mesma arte, inspiração e humor. Acqua Toffana! Venenum attemperatum...

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